Uma das faces mais perversas da pandemia de COVID-19, com a qual nos deparamos desde o início de 2020, se revela no tratamento dispensado às mulheres que assumem o trabalho de cuidados nesse período. Suas atividades são classificadas como essenciais, pois são pessoas fundamentais para a recuperação dos doentes e/ou para a prevenção ao contágio. Contudo, são mulheres desvalorizadas em diversos níveis e tratadas como seres descartáveis.
As atividades de cuidado estão inseridas no complexo de atividades e relações por meio das quais reconstruímos diariamente nossa vida e nosso trabalho. Trata-se do trabalho reprodutivo, essencial para sobrevivência humana. A maior parte desse trabalho é feita por mulheres não brancas, que assumem o cuidado da casa, das crianças, doentes e idosos. Elas servem aos assalariados física, emocional e sexualmente, preparando-os para o trabalho dia após dia, mas raras vezes são cuidadas e amparadas quando adoecem e/ou envelhecem (FEDERICI, 2019).
Para compreender a desvalorização das mulheres que cuidam, é importante lembrar que, a partir do final do século XV chega às Américas o homem heterossexual/branco/ patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu, e que impôs à força sua visão de mundo nesse novo território, como observa Grosfoguel (2008). A ojeriza à mulher, fruto da misoginia própria desse homem europeu, legitima o uso meramente utilitário dos corpos femininos, em prol desse projeto de dominação.
Na carta de Pero Vaz de Caminha, considerada a “certidão de nascimento” do nosso país, há poucas referências às mulheres nativas, mas em todas elas a temática é apenas uma: o corpo. O “corpo feminino das índias amedrontaria o europeu, assim como a participação delas de maneira viva, força pujante no seio da sociedade indígena. Elas eram ativas, eram vistas ocupando os espaços públicos, ao contrário das europeias, fechadas em casa e restritas à atuação familiar” (REZZUTTI, 2018, p.27).Essas mulheres logo sentiram o efeito concreto desse medo branco. Para os invasores, eram meros corpos disponíveis, prontos para serem usados e descartados. A expedição da nau Bretoa saiu de Cabo Frio/RJ em 1511 produtos e animais exóticos, além de 36 índios, 10 homens e 26 mulheres. “As mulheres teriam sido abusadas sexualmente pelos marinheiros ao longo da travessia. Uma delas, como nos conta o escrivão que documentou a viagem, chamada de Brígida, foi uma das poucas a sobreviver à viagem. Ela então foi entregue a certo Francisco Gomes em Portugal, que havia encomendado uma índia para si” (idem, p.32).
Pouco tempo depois, mulheres africanas escravizadas e traficadas para a América Portuguesa se juntam ao mesmo destino trágico das indígenas, as “negras da terra”. Mais corpos femininos para serem degradados, em nome do bem-estar e da saúde dos colonizadores.
Há registros de que no Brasil também vigorou a prática de escravagistas saarianos que pretendiam curar doenças venéreas tendo relações sexuais com uma jovem escrava virgem (Meillasoux, 1995, p.65). Uma prescrição que gerou o estupro de meninas por homens contaminados pela sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, meros corpos disponíveis para a “cura” do senhor, sem nenhuma preocupação com as conseqüências disso para a jovem escrava.
A historiadora Mary Del Priore (2009, pp. 175-216) constata que a partir do século XVIII se consolidou a visão da mulher como um simples instrumento a serviço da espécie humana. Na sociedade colonial brasileira as mulheres deveriam servir a um projeto demográfico. A ciência médica construída exclusivamente por homens brancos, respaldada pelo projeto da Igreja Católica e do Estado, amparou o “aprisionamento” dos corpos femininos que deveriam trabalhar em prol da ocupação e da exploração dessa imensa “ilha” que chamavam “Novo Mundo”.
É dentro desse projeto que mulheres escravizadas, livres e libertas, cozinharam, limparam, cuidaram, atenderam desejos sexuais e até mesmo amamentaram os colonizadores, possibilitando a sua reprodução e o seu estabelecimento no território colonizado.
Apesar disso, continuaram sendo vistas como inferiores, incivilizadas, feiticeiras, justificando desse modo sua desvalorização e exploração utilitária. É interessante notar que essa prática se fortalece no século XIX, onde a adoção dos princípios liberais e a instituição da monarquia constitucional não significaram a valorização das trabalhadoras que exercem atividades de cuidado, ao contrário, reforçou o uso utilitário desses corpos, através do racismo e da eugenia que persistiram mesmo após a abolição da escravatura.
Resgatar essa memória auxilia a compreender como chegamos ao quadro atual, onde diversas as mulheres que assumem as atividades do cuidado são expostas ao desamparo, seja por não contarem com uma fonte de renda nesse período, seja por ficarem expostas a riscos extremos ao manterem suas atividades profissionais, a fim de garantir o próprio sustento e o de sua família. E quando adoecem ou não cabem na margem de lucro estipulada pelo mercado, são simplesmente descartadas.
Achille Mbembe (2018, pp. 27-35) nos lembra que a escravidão praticada no ciclo colonial foi uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. A condição de escravizado/a resulta na perda do direito sobre o próprio corpo, em muitos aspectos escravas e escravos experimentaram uma “morte-em-vida”. A raça é o elemento crucial para concatenar biopoder, estado de exceção e estado de sítio, uma articulação que leva as colônias a serem locais onde as garantias podem ser suspensas.
Ora, a pandemia cria um estado de exceção, onde corpos de trabalhadoras não-brancas são mobilizados e colocados em risco, supostamente a serviço da “civilização”, mas na prática em prol da manutenção da saúde e do bem-estar da pequena parcela de eleitos como os que podem viver: prioritariamente os classificados como brancos/as e/ou proprietários/as. Os outros, podem ser extenuados, expostos a riscos e até mesmo descartados, a partir do momento que são considerados inúteis.
Neste último grupo encontra-se a maior parte das brasileiras não-brancas, que promovem com as pessoas que se beneficiam do seu trabalho uma relação de cuidado, mas recebem em troca uma relação sem desejo. Esta, na prática significa que a vida dessas mulheres (domésticas, babás, cuidadoras, auxiliares e técnicas de enfermagem, auxiliares de creche, merendeiras, professoras primarias, etc.) não importam, pois onde há relação sem desejo há vontade de extermínio (MBEMBE, 2018).
Podemos perceber a lógica da necropolítica operando tanto na permissão para exaurir trabalhadores da área da saúde, com prorrogação de jornada que já são de 12hs, constante descumprimento na obrigação de fornecer equipamentos mínimos de proteção, como máscaras e álcool em gel, ausência de amparo previdenciário às mulheres expostas ao risco de contaminação por continuarem em atividade durante a pandemia. Enquanto isso, outras profissionais das áreas da saúde e do cuidado “ociosas” no momento são simplesmente descartadas.
Nos dois casos nota-se a inexistência de qualquer preocupação com a preservação da saúde e da própria existência dessas mulheres, que só são aceitas socialmente na medida em que são úteis à preservação do bem estar da elite. É preciso, portanto, superar nossas raízes coloniais, que alimentam uma perversa necropolítica onde as mulheres que cuidam são simplesmente abandonadas quando precisam ser cuidadas.
Referências Bibliográficas:
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 80 | 2008, colocado online no dia 01 Outubro 2012, disponível em: URL: https://rccs.revues.org/697.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MEILLASOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo, Editora UNESP, 2009.
REZZUTTI, Paulo. Mulheres do Brasil: a história não contada. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.