Por Ana Amélia Hamdan, para Amazônia Real , compartilhado de Projeto Colabora –
Pesquisa revela que, de 2010 a 2019, foram registrados 4.681 ocorrências – mais de um caso por dia – em São Gabriel da Cachoeira
São Gabriel da Cachoeira (AM) – A sobrecarga de trabalho no dia a dia, a dificuldade em ter renda própria, a dependência do companheiro, o machismo contra quem ocupa cargos de liderança, a brutalidade na hora do parto, a falta de apoio familiar, os ataques verbais e físicos, o abuso sexual, o excesso de bebida alcoólica, algumas questões culturais. A violência contra a mulher indígena e as raízes do problema têm várias faces. No município de São Gabriel da Cachoeira, região do Alto Rio Negro, no noroeste da Amazônia, onde existem povos de 23 etnias indígenas, a complexidade aumenta. Devido à diversidade e às diferenças entre esses grupos, inclusive de línguas, a dificuldade passa até mesmo por dar nome a esse tipo de violência. Mas isso não impede que os números mostrem a gravidade da situação: no período de dez anos, entre 1º de janeiro de 2010 e 31 de dezembro de 2019, foram registrados na delegacia do município 4.681 eram de violência contra a mulher. Isso significa que nesse período foram registrados, em média, 1,28 casos de violência por dia.
A estatística é do Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro, realizado pelo Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn) em parceria com o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas (Ovgam), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com o Instituto Socioambiental (ISA) e com Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Os dados da estatística levantados pelo Ovgam/Ufam foram divulgados no dia 28 de fevereiro e irão possibilitar que São Gabriel da Cachoeira seja a primeira cidade do Amazonas a ter dados sobre a violência de gênero coletados no período de dez anos.
O Ovgam/Ufam ainda não concluiu a análise dos crimes de violência contra mulher indígena em São Gabriel por tipificação, conforme o Código Penal, na década de 2010 a 2019. No entanto, a estatística realizada entre os anos 2010 a 2014 apontou que, dos 1.181 crimes registrados, 590 foram de lesão corporal; 139 de ameaças; 110 ameaças de morte; 115 de calúnia, injúria e difamação; 50 estupros; 26 de violência doméstica e família. Não foram observados nos boletins de ocorrência casos de homicídios ou feminicídios naquele período, o que não significa que não tenha ocorrido esses crimes.
A pesquisa realizada entre 2010 e 2014 fez um diagnóstico dos agressores e apontou que a violência contra a mulher indígena, na grande maioria dos casos, o/a agressor/a tem alguma ligação com a vítima. Em pelo menos 499 dos 1.181 ocorrências, os responsáveis pela violência foram companheiros ou ex companheiros. Entre as mulheres que sofreram as agressões, 622 tinham idade entre 25 anos a 64 anos, e 331 eram jovens e adolescentes.
Durante o levantamento, os pesquisadores tiveram que lidar com escassez de dados e problemas nos registros. Mas a antropóloga Flávia Melo, coordenadora do Observatório de Gênero do Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (Ovgam/Ufam), pondera que os próprios policiais trabalham, muitas vezes, com poucos recursos.
“Essa dinâmica (escassez de dados) a gente observa em quase todo o Estado do Amazonas onde a gente pesquisou. Isso não é questão de São Gabriel da Cachoeira. Os registros, quando ainda acontecem em livros ata, apresentam algumas limitações. Isso não significa ineficiência da polícia ou incompetência do funcionário. Porque a gente tem um conjunto de coisas. Essas delegacias geralmente trabalham com equipe reduzida. Geralmente é uma delegacia para atender todo o município”, explica Flávia Melo.
Do total de registros de violência contra as mulheres indígenas, apenas sete trouxeram informação sobre etnia das pessoas envolvidas. Por isso surgiu uma demanda dos pesquisadores que foi solicitar à delegacia que conste no boletim de ocorrência a etnia e demais informações do caso. “Aqui no Alto Rio Negro a gente precisa ter informação étnica e precisa ter informação da comunidade de origem, bairro de residência. Isso ajuda a gente e a polícia a termos uma visão mais complexa”, completa Flávia Melo.
Diante do cenário traçado pelos dados, a antropóloga da UFAM ressalta o esforço de se olhar não apenas para a violência, mas também para a forma como as mulheres da região vêm agindo frente ao problema. “O nosso esforço é olhar para essa imagem e não ficar só na violência. Mas não significa negá-la. Porque está aí. Ela mata mulheres, ela marca corpos, ela incide diretamente na forma como essas mulheres vivem nessa cidade e como vivem nessa comunidade. Mas também estão os remédios, os benzimentos, a militância. E é um trabalho que transcende São Gabriel da Cachoeira. O que a gente está vivendo hoje no Brasil, de protagonismo das mulheres indígenas, é uma força absurda. Talvez seja uma da coisas mais vivas e atuantes nesse momento”, explica.
“A relevância desses números é para incidência política. É para ferramenta política e para uso dessas lideranças. Mas nunca para reduzir essas mulheres a isso. Essas mulheres não são um número de estupro. Elas são mais do que isso. O esforço do diálogo, das rodas, de escutar essas mulheres, essas lideranças. Os números nos seduzem muito facilmente”, diz.
O professor doutor José Miguel Nieto Olivar, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), também responsável pelo projeto, reforça a importância de se perceber como as mulheres atuam frente a violência “Um dos pontos primordiais foi entender melhor a violência contra a mulher no contexto das mulheres indígenas do Rio Negro. E até mesmo entender a mulher, devido à grande diversidade étnica e as diferenças entre elas. E, nas rodas de conversa, foi possível verificar que o foco não era apenas a violência, mas como elas vinha agindo perante esse cenário”, diz.
“Apesar disso tudo, apesar da dificuldade, da complexidade e da escassez de dados, a gente já sabe que mulheres rionegrinas se vêm obrigadas a lidar com diversas agressões ao longo de sua vida, em diversos contextos que habitam. E que essas agressões, violência, são abundantes e, em muitos, são extremamente pesadas”, completa o pesquisador.
Em desenvolvimento desde 2010, o Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro, realizado pelo Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn), teve entre suas atividades de 2020 a divulgação de alguns dados e recomendações. Entre as propostas é a criação de uma rede, semelhante ao projeto de promotoras legais populares, prevendo capacitação de mulheres para dar apoio e orientação em casos de violência de gênero. A ação, que teria o nome de promotoras legais indígenas, também busca reduzir um dos problemas identificados pelo departamento: as dificuldades para lidar com a legislação, inclusive a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 22 de setembro de 2006 para punir e coibir atos de violência doméstica contra a mulher no país.
“É (a capacitação) para saber mais das leis e saber como lidar com alguns problemas, para onde encaminhar”, explica Elizangela Baré, coordenadora do Dmirn/Foirn. No projeto, ainda em fase de elaboração, há demanda para incluir informações sobre legislação específica de área de fronteira – como é o caso de São Gabriel da Cachoeira -, legislação referente aos povos indígenas, Lei Maria da Penha, entre outros. No modelo atual, um dos capacitadores é a da Secretaria de Estado da Justiça, Direitos Humanos e Cidadania do Amazonas (Sejusc).
Elizangela Baré reforça que a capacitação é importante porque há desconhecimento da legislação. E, mais do que isso: em alguns pontos, segundo ela, o que está na lei pode ser considerado “contra a cultura de alguns povos”. E informa que, por isso, as indígenas querem que os homens também participem do processo, para que acompanhem o trabalho das mulheres e sejam informados sobre a legislação.
Para a coordenadora do Dmirn/Foirn, a aplicação da Lei Maria da Penha ainda encontra resistência entre muitos homens indígenas, como os do Alto Rio Negro, pois, para eles, a legislação interfere nas relações e nas ocupações internas das famílias. Por isso, ela alerta sobre a necessidade de explicações mais detalhadas para que as mulheres se apoiem juridicamente na defesa de sua integridade física e mental, sem que justificativas culturais sejam usadas para defender a violência doméstica.
“A legislação é como se fosse para nós contra a nossa cultura [assim pensam os homens]. Isso a gente vê quando vai falar sobre a Lei Maria da Penha. Eles [os homens indígenas] pensam que essa lei é contra a cultura. E eles falam assim: ‘na minha cultura é assim. Mulher tem que fazer mingau de manhã, colocar na cuia e oferecer para o esposo’. E a gente fala: ‘não. Hoje nós não estamos mais de fazer mingau e servir para o homem. Todos nós sentimos fome, a gente vai lá e a gente se serve’. Então, a legislação é como se fosse contra a nossa cultura, entre aspas. Porque a gente não consegue entender de que forma ela vai funcionar dentro daquele território, daquela casa, daquela família. Quando a mulher fala da lei, o homem vai dizer ‘você já está falando demais, sabendo demais não é isso que funciona. Na nossa cultura é de outro jeito.’ Sempre tem uma fala de colocar a gente lá embaixo”, disse.
A delegada de São Gabriel da Cachoeira, Grace Jardim, apoia a ideia da rede de promotoras legais indígenas. “Toda rede de proteção é eficaz, pois a mulher pode buscar ajuda em diversos setores”, diz. No dia a dia da delegacia, segundo ela, a violência contra a mulher está intimamente ligada ao abuso de álcool por parte de seus parceiros.
“Ameaça e lesão corporal após o companheiro ter ingerido bebida alcóolica”, diz, referindo-se aos casos mais comuns de violência contra a mulher que chegam à delegacia. Para reduzir o problema, ela acredita que as medidas mais eficazes são conscientização da população sobre as leis, empoderamento feminino e denúncias.
O município de São Gabriel da Cachoeira está localizado na região do Alto Rio Negro, distante 810 quilômetros da capital Manaus. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem na região sete terras indígenas. Segundo estimativas atualizadas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população é de 40 mil pessoas. No Censo de 2010, quando o número era menor, dos 37.896 habitantes do município, 29.017 se autodeclararam indígenas, o que corresponde a 76,57% da população.
Depoimento: Elisângela, coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro
Os trabalhos do Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro, realizado pelo Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn), contaram com a realização de nove rodas de conversa, com o apoio da jornalista do ISA, Juliana Radler. Nos encontros, as mulheres indígenas falaram sobre como elas definem a violência e como enfrentam o problema. A reportagem da Amazônia Real ouviu as histórias de três mulheres que participaram da pesquisa.
“O que nós mulheres indígenas consideramos uma violência para nós é a falta de emprego. Essa é uma violência que vem acontecendo há muitos anos. E por causa da falta de emprego, essa mulher é dependente dele (do companheiro). E ela não tem como se sustentar com os filhos. E vem a desestruturação da família inteira. E, além disso, a outra violência é quando a gente chega da comunidade a gente não tem o amparo para se sentir acolhida dentro do município. Então a gente acaba sofrendo e através disso daí vão acontecendo essas maiores outras violências, que é o seu esposo passar a beber, filhos usam droga, isso vai agravando dentro da família. O pai de família não tem o que fazer, vai beber. A mãe de família também vai beber porque não tem o que ela se ocupar aqui no município.
Tem sempre mais oportunidade para homens. E ela fica submissa. Se você chegar na cidade, você vai precisar do que o branco chama de dinheiro.
O Departamento (Dmirn) surgiu com essa finalidade, de que mulheres que viessem do interior pudessem falar ao menos o português. Era fazer com que as mulheres tivessem geração de renda para ajudar elas no sustento de sua casa. Quando foi fundado, eram só quatro associações de mulheres. Hoje nós temos 34 associações de mulheres. Todas elas têm finalidade de gerar renda. Na comunidade e nas sedes. Trabalhar através do artesanato para poder sobreviver. Antigamente não tinha empreendedoras indígenas. Hoje tem muito. Hoje as mulheres que vendem são microempreendedoras porque receberam formação, receberam orientação. As associações trabalham com cerâmica, piaçaba, fibra de tucum, fibra de cipó, banco tukano (junto com maridos), colar, brinco.
E nunca ninguém vai tirar de nós a conquista do movimento. Sem o movimento indígena não seríamos ninguém. Porque ninguém iria lutar pela nossa terra, nossa saúde, nossa educação, por nós mesmos. Se não tivesse movimento, teria mais violência ainda”.
Depoimento:
“Vou falar de mim um pouco da minha infância. Minha trajetória começou a partir do momento que eu era mulher, era menina. Os outros eram homens, tinham mais liberdade e a gente tinha que estar mais atarefada. A gente entendia como cultura. A partir do momento que eu passei a ser mulher eu via como sempre nós indígenas, a gente como testa de ferro, pele de pedra ou de ferro, aqui em São Gabriel. Porque assim, a gente era empregada doméstica, a gente era obrigada a lavar roupa lá nas pedras, nesse sol quente. Então, a partir daquele momento eu já começava a pensar assim: eu não quero essa vida para o resto da minha vida. Ser sacrificada no sol quente, a barriga roncando e tem que lavar. Aquelas pessoas que tinham, patrão, que tinha filhos, não estavam nem aí para organização. Chega troca e joga e a gente é obrigado de catar tudo. Ou seja, não tem um pingo de noção de pensar: eu também faço parte do ambiente e tenho que colaborar.
Hoje eu analiso como começa a violência.
Como violência, que posso considerar dentro da minha casa como mulher, eu acho que é mais essa parte. O homem acha que a gente tem que ser tudo. Desde gerar filho, cuidar do filho, levantar e ir para a pia, lavar, organizar, enxugar, arrumar, depois vai para o tanque de roupa esfregar, espremer, estender, recolher, passar, colocar empilhado de novo. Essa empilhação eu aprendi com minha mãe. Tudo tem que ser empilhadinho, bonitinho para facilitar nossa vida.
Ele (o marido, após começar a ajudar em casa, com a filha) sentiu na pele e começou a mudar. Você é considerado dentro de casa como se fosse um objeto quando o homem não participa. Isso que eu queria tanto que as pessoas entendessem.
Outra coisa. Onde a mulher sofre violência na questão de parto. Porque fui vítima de um parto talvez por falta de conhecimento técnico. Porque talvez não estava preparada. Um homem branco (o médico) que nunca conversou com uma parteira aqui da nossa tradição. Minha mãe era parteira, mas não me acompanhou porque estava doente.
Quando meu marido me levou para o hospital, deu aquela dor. Já estava na hora. Depois de 15 minutos, o médico estourou a bolsa e me mandou caminhar. ‘Daqui a meia hora vai nascer’, disse. Daqui a meia hora, passou a dor e a barriga subiu. E eu comecei a levar injeção para dilatação. Aquela dor terrível, de ver estrela. Tentou de me partejar. A violência foi forte. E eu tive que passar por uma cesariana. Você é toda cortada e depois tem que ser aberta.
Por causa desse todo relato, eu decidi ter uma filha. Pelo meu plano, eu queria um casal de filho. Eu teria esse direito. Mas por essa violência que eu sofri, que eu falo para outras mulheres, é muito doloroso”.
Depoimento: Edneia Teles, ex-atleta, Rede Jogue como uma Garota
“Como mulher, eu acho que a violência não se trata só de levar porrada. Temos vários tipos de violência. Eu tive meu filho de fora, sem ser do casamento. Eu sofri muito. São palavras ofensivas da própria família. E fora também, na sociedade. Quando a gente é envolvida no movimento de mulheres esportistas, juventude, a gente sofre preconceito, de que a mulher não tem competência. ‘O que a mulher está fazendo aqui, a gente é que está no comando’ (palavras vindas dos homens). Ficava assim sem voz.
Em todos os cantos, quem manda é homem. E você chegar, querer falar, no meio de cinco, seis homens, você é a única mulher, é tipo é o mesmo que nada. Sempre gostei de praticar esportes, futebol, vôlei. Gosto muito de trabalhar na questão de juventude, direitos da juventude indígenas na qual onde a gente conseguiu espaços também na questão de gêneros. Hoje quando a gente fala de esportes, futebol, é totalmente diferente aqui na cidade. Antes era dominado por homens. Se jogasse bola é porque é lésbica. O futebol é para várias mulheres, seja ela lésbica, casada, de várias classes, bissexual, isso ou aquilo.
Outra também…. Que a gente sofre quando se trata da mulher indígena, a mulher indígena tem que ficar na cozinha. Mulher indígena só serve para fazer comida para o esposo. Se você se sair como liderança, não a veem como liderança. É uma mulher falando, não vou ouvir como liderança. Para eles, um homem falando era o certo. Eu vejo como uma forma de violência contra nós mulheres, de não ter respeito, de não tratar a gente da forma que a gente poderia ser tratada.
E nós mulheres conseguimos conquistar um pouco da nossa liberdade. Chegamos ao ponto de dizer basta, mas ainda não acabou”.
*Especial para Amazônia Real