Dez dias infiltrado em grupos bolsonaristas: um ensaio dialógico ou uma reportagem à paisana

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Por Flávio Morgado e Eduardo Reis de Mello (autor convidado) , compartilhado da Revista Palavra Solta – 

Durante dez dias estive em dois grupos bolsonaristas no aplicativo Telegram: Patriotas 2.0 (um grupo de fanáticos bolsonaristas, defensores da formação de um partido próprio e de pautas como o armamento massivo da população) e AntiVacinas BR 2021 (um grupo inteiramente voltado ao negacionismo científico e propagandista da cloroquina). Minha intenção desde o início era apenas escutar; de um lado porque nos parece um atributo caro nos últimos tempos, por outro, porque nenhum dos meus argumentos teria ressonância naqueles espaços. Foram dez dias intensos, de estômago embrulhado e uma troca profícua com o sociólogo e policial federal Eduardo Reis de Mello, que assina essa incursão comigo.

5 de fevereiro de 2021, sexta-feira




De: Flávio Morgado

Para: Eduardo Reis de Mello

Edu,

Em um primeiro momento, não existe a possibilidade de não me colocar perante essa experiência. Mesmo com todas as informações referentes aos grupos bolsonaristas e defensores de teorias da conspiração, embora eu, como tantos, tenha atravessado indigesto alguns almoços de família com seus tios reacionários e seu senso comum cada vez mais envenenado de fake news como formadoras de opinião, ainda assim foi assustador o que encontrei nesses três primeiros dias.

Primeiro, me assustou o número de integrantes desses grupos, ultrapassam os 10 mil seguidores, e ainda que o debate seja exaustivamente repetitivo (o que inclui perfis que reenviam a mesma informação ao longo de 24 horas), o engajamento é alto se pensarmos sobretudo o gasto de energia que aquilo envolve. É impossível, já adianto, propor qualquer análise política ou debate nesses grupos, não se trata de um projeto economicamente discutido ou mesmo uma pauta ideológica estabelecida por um consenso teórico.

É tudo um pastiche do real. A teoria se resume aos robôs-pautas, uma espécie de perfil falso, gerenciado por alguém que gerencia outras contas como essa em outros grupos similares, e espalha as notícias falsas do dia, as matérias espetaculosas que visam os mesmos alvos e as inúmeras teorias da conspiração. A massa responde.

Numa pesquisa breve de alguns perfis que me chamaram mais atenção, é possível ir em um lugar bem comum dessa investigação: a figura que é toda ela um acúmulo de frustrações, e elas são das mais diversas ordens. Perfis que variam de pessoas de meia idade, funcionários públicos, jovens com dificuldade de relacionamento, oficiais da reserva. Há de fato nesse sentido uma representatividade capaz de estabelecer um corte histórico muito claro: o bolsonarismo é o subproduto de uma crise geral de representatividade, mas atiçada em sua pior faceta.

É o subproduto de um avanço da pauta feminista que vai como um murro na cara daquele moleque pronto para ganhar o mundo com dinheiro e falo, mesmo que suas dificuldades de relacionamento sejam gigantes, e que vê uma castração total de suas expectativas num mundo que facilmente ele pode colar isso ao PT ou à esquerda, porque na internet diz. É o subproduto de um avanço das políticas afirmativas, que para além do asco da classe média em dividir a universidade, inevitavelmente levaria às gerações formadas a partir dessa política a repensar o plano educacional e representativo do país, isso vai como um tapa (aquele com as costas da mão, desmoralizante) na cara de uma plutocracia que empenhou a libido inteira na aquisição de bens exclusivos, cancelas & guaritas, e não vai admitir o tempo da divisão no auge de seu gozo raso. Isso tudo é chover no molhado, isso é o Brasil, no mínimo, desde 2013.

Mas me espanta a compra fácil dessa quinquilharia. Se partirmos só desse primeiro lugar que já me chamou atenção de cara, a disposição empreendida aos grupos, já é um apocalipse semiótico. Porque são urros, argumentos absolutamente sem nenhuma relação com o real (em muitos momentos, eu lembro das correntes que as minhas tias mandavam, tipo “você sabia que Fanta laranja dá câncer?”, e pensar que como num episódio tenebroso de South Park, as nossas vidas caíram sobre essa ditadura das correntes das minhas tias). Em um espaço de oito horas, tem perfis que emitem cerca de 250 mensagens, todas elas de uma raiva descomunal. Eu imagino uma verdadeira inserção do remorso na rotina desses cidadãos: acorda, dá aquele “bom dia” irônico com algum petista ou alguma medida do PT que tornou lei no Maranhão o uso de vibradores para crianças de até cinco anos, prepara o almoço, senta para fazer aquela siesta, adentra a ágora digital e começa a se nutrir e a reproduzir uma série de informações perigosas: “olha como os gays estão crescendo economicamente”, “mulher negra diz que todos os brancos devem morrer”, “casal de gays obrigam filho adotivo a namorar coleguinha na escola”. Vai se criando uma atmosfera de ataque aos seus valores, sempre de maneira direta e agressiva, em que qualquer postura odienta seja justificada como uma defesa, como a profissão de um homem de fé, a virtude da família. Esse mesmo cidadão desce para comprar pilhas, cruza com sua vizinha de 16 anos e diz que ela cresceu e já está pronta para namorar, toma uma resposta atravessada, volta para casa e reposta um vídeo atribuído ao movimento feminista em que mulheres estão defendendo Satã e chutando imagens de Cristo. E assim segue a vida, nessa roda morta do rancor. Se de um lado, ainda que em imaginação, seja possível traçar um esboço dessas rotinas e que esse engajamento de uma camada frustrada da população engendra uma espécie de desporto do ódio, porque a maneira que isso se traduz na participação dessas pessoas é da ordem da disciplina e da memória muscular; por outro lado, é importante pensar nesse paiol que há nas redes, não importa a minoria ou o seu ódio, haverá um vídeo ou uma matéria de uma plataforma voltada para isso, respaldando, fervendo sua bílis.

É um contexto economicamente delicado, há erros fundamentais cometidos pela esquerda que ajudaram a chocar o ovo dessa serpente, há uma descrença perigosa, no mundo como um todo, em relação à classe política, há as formas cínicas do mercado se vestir de cordeiro, e isso tudo explica uma parte desse engajamento. Mas no que há de mais bruto, mais baixo, mais vil do Bolsonaro, também há o mais representativo. De uma forma, que a minha primeira impressão é que se existe mesmo uma grande articulação, capitaneada por Steve Bannons da vida (ou será que já fui mordido por um zumbi das teorias conspiratórias?), esse movimento encontraria no Brasil a sua face mais perversa. Porque parece perfeitamente se encaixar.

08 de fevereiro de 2021, segunda-feira

De: Eduardo Reis de Mello

Para: Flávio Morgado

Caro Flávio,

Eu tenho mergulhado o mais profundamente que posso nisso que começo a chamar de bolhas epistêmicas. Embora eu seja avesso às teorias da conspiração que tendem a simplificar estes mundos paralelos como resultados de uma vontade maligna, é preciso reconhecer que há agentes com significativo poder de manipulação.

Eu não sei se já tinha notado, mas de poucos anos para cá passou-se a usar o termo “narrativa” no noticiário político. Não é retórica ou discurso, é narrativa, o que traz algumas características novas. Internacionalmente, as milícias de desinformação têm atuado com cada vez mais frequência. Não é a tradicional “propaganda”, que distorce os fatos em benefício de um regime, mas o Firehosing of Falsehood (mangueira de fogo de falsidades).

O que isso faz é criar uma espécie de caos epistêmico no qual muitas pessoas passam a não confiar nas autoridades tradicionais. A Alt-Right é um movimento internacional que, embora esteja longe de ser uniforme ou institucionalizado, apresenta táticas muito similares.

É mesmo assustador observar no que as pessoas destes grupos parecem acreditar. Na verdade, eu nem sei se elas acreditam, no sentido tradicional. A jogada ali parece ser muito mais a de desconstruir todas as certezas para articular um mundo possível movido a seus afetos reacionários. É como se alguém mal-intencionado tivesse lido Foucault e Lyotard e feito com eles o que o Olavo de Carvalho faz com o Gramsci: utiliza suas ideias ao mesmo tempo em que as denuncia. Há uma razão cínica por aí.

Veja, o Industrialized Disinformation 2020 – Global Inventory of Organized Social Media Manipulation de Oxford, mapeou 81 países com esse tipo de milícia digital que prática profissionalmente a desinformação. O Brasil conta com grupos pagos para criar e disseminar mentiras a favor da Alt-Right, mas isso está acontecendo no mundo todo. Perceba que em todos os lugares as características são:

  • Escolhe-se um inimigo mortal por vez;

  • Criam-se notícias falsas em uma quantidade e frequência tão grandes que seria impossível desmenti-las por métodos tradicionais;

  • As notícias surgem simultaneamente em diversos canais de comunicação (mesmo que todos sejam de péssima credibilidade);

  • Ataca-se a imprensa tradicional diariamente, tirando o crédito de qualquer informação que venha dela;

  • Constrói-se a narrativa com base em alguns elementos reais, mas distorcendo-os de modo a gerar confusão e impedir a crítica;

  • As notícias criam narrativas que consistem em afirmar que todas as outras versões de mundo são também “narrativas”, então carregam afetivamente seu conteúdo para que a pessoa se sinta propícia a escolher o lado que prefere;

  • Ganha-se pela quantidade, pela afetividade (geralmente de ódio, mas não exclusivamente) e pela forma (como a lacração, por exemplo, que independe do conteúdo, basta falar algo ofensivo com aparências de “desmascarar” o interlocutor, por mais que ele esteja certo).

A desinformação é perigosa. É obviamente uma estratégia política inescrupulosa. O que precisamos entender é que não estamos lidando com uma coisa simples como um “gabinete do ódio” e menos ainda com grupos que se reuniram por acaso. Eles estão organizados, só não possuem uma gestão centralizada. Os “hubs” de desinformação simplesmente sabem o que fazer.

A viralidade dos discursos de ódio é muito potente. Cada resposta a ele é já interpretada de maneira conveniente pelos produtores de narrativa. Esses intermediadores semióticos como o próprio Bolsonaro, mas também os grandes portais de desinformação financiados direta ou indiretamente pelo governo, transformam muito facilmente qualquer coisa em seu contrário. Então o que vemos nestes grupos é que não há como o governo sair-se mal discursivamente. Eles podem mentir, voltar atrás na mentira, falar outros absurdos e assim mesmo serão defendidos ferozmente por essa gente da bolha.

Perto da Rússia e da China a coisa aqui, nos EUA e na Europa é quase amadora, embora bem preocupante. Não dá para falar seriamente em democracia neste contexto. Pense que cada pessoa destes grupos serve ainda para replicar a desinformação em seus grupos de Whatsapp. Os nossos vizinhos nunca estiveram tão distantes de nós, pois cada um tem acesso a uma bolha epistêmica distinta. Os processos são complexos e algumas pessoas chamam o que está acontecendo de “guerra híbrida”. Bem, eu não sei se o nome se aplica bem, pois não somos atacados por um país estrangeiro e sim por um grupo político. De qualquer forma as táticas são as mesmas. Esse pastiche do real que você fala, é intencional e bem planejado, testado e propagado. É duro ver como estamos vulneráveis a esses ataques. Mas não devemos nos sentir impotentes. Tenho o objetivo de atacar esses hubs que te falo. O Sleeping Giants[1] faz isso de uma forma bacana também. Acho que o trabalho vai ser lento e gradual. A verdade, se é que existe, não se produz sozinha, mas é uma “atividade” no sentido forte da palavra. Então o que eu diria é que, independentemente de representar melhor ou pior o real, a realidade precisa ser construída. Estes grupos são horríveis, mas constroem um mundo para habitar. Precisaremos produzir alternativas melhores.

11 de fevereiro de 2021, quinta-feira

De: Flávio Morgado

Para: Eduardo Reis de Mello

Edu,

É exatamente essa organização, esse direcionamento ideológico que está por trás dessa disseminação em massa de notícias falsas e descrédito na classe política que tem me causado um espanto incomum. Porque para além de todo debate global em torno desse recrudescimento fascista, é preciso estar atento (e forte) ao que se engendra nos bastidores da política nacional.

Partindo de uma análise inicial em torno das influências externas e do que seriam esses movimentos históricos que nos põe nessa infeliz sincronicidade, vamos pensar o possível arquiteto desse projeto de extrema-direita: o antiglobalista, racista e fascista, Steve Bannon.

Tido como um guru dentro do movimento neofascista, Bannon é um veterano da Marinha estadunidense, fundou o site Breitbart News (núcleo do discurso reacionário desse novo fascismo, além de principal estrategista e arrecadador de fundos privados para a causa). Sua marca ideológica é a narrativa de uma extrema-direita encantada por fascistas ditadores, teocratas e fanáticos de toda sorte. Seu antiglobalismo é um declarado retrocesso em direção às posições nacionalistas e neofascistas como pilares da reorganização de uma política internacional. Seu lema é destruir para construir.

Um lema que facilmente ecoa na boca rude de Jair Bolsonaro: “eu sou capitão do Exército. Minha especialidade é matar”. De fato, institucionalmente matar. Que além desses quase 300 mil mortos às costas da sua negligência, o bolsonarismo se comporta como uma espécie de metástase no poder institucional.

Mas se destrói para construir, então qual o plano?

Quando o Crivella ganhou a prefeitura da minha cidade, lembro de aquilo ter sido um choque muito grande, porque em uma das principais capitais culturais do país, um bispo da Igreja Universal conquistava o poder executivo. Entre parcas esperanças de que quatro anos era pouco tempo para uma destruição e a ansiedade generalizada do que estava por vir, o clã do Bispo Macedo governou tão silenciosamente que não lembro de Crivella ter inaugurado um deque sequer com seu nome. Entre o argumento de que o caixa da prefeitura estava desfalcado, tentativas fracassadas de impeachment e algumas notícias de aumento da influência das igrejas neopentecostais na gestão, o bispo terminou o mandato. E a verdade é que as consequências ainda virão, porque o exercício diário de Crivella foi o aumento da permeabilidade da teocracia no poder público. Muito pior do que o esvaziamento cultural da cidade ou o boicote narrativo ao carnaval (ainda que continuasse a molhar a mão dos bicheiros sob outros pretextos), medidas como a concessão de estacionamentos na Lagoa ou no Maracanã para pequenos grupos de empresários evangélicos é fundamental para o seu projeto. Porque, silenciosamente, de concessões às empresas de guardanapo a estacionamentos, um grupo de fiéis do Bispo vai enriquecendo. E se em quatro anos, apenas com a prefeitura de uma grande cidade, não seja ainda possível reformular todo um paradigma político, ainda assim dá para reformular o tabuleiro a seu favor. Empresas que faturavam 200 mil reais por mês, mas ligadas ao poder da Universal, abocanham licitações ao longo do mandato e passam a faturar 7, 9 milhões por ano. Quantia suficiente para transformá-los em financiadores de campanhas e agentes ativos do poder socioeconômico da cidade.

Bolsonaro, ao passo que nos manda enfiar latas de leite condensado na bunda e põe bufões-humoristas em seu lugar nas coletivas, vai construindo uma teia subterrânea, que há anos intelectuais se debruçam nesse diagnóstico, chamada milicianismo.

Em termos gerais, é evidente o aumento do poder das polícias e o respaldo federal à autonomização da linha de frente, assumindo assim a necropolítica como fundamento desses grupos neofascistas: a ideia de Bolsonaro é uma afirmação paranoica e bélica do que ele define como “cidadão de bem”. O cidadão de bem é aquele que está sempre em seu limite, sua moral ameaçada e sua necessidade de defesa armada dos seus valores éticos e controle sobre os outros corpos. Isso tudo que estamos acompanhando nos grupos.

Vira e mexe, pula uma notícia sobre as propostas milicianas de Bolsonaro, como por exemplo, o excludente de ilicitude que sempre defende e respalda em relação às polícias, e a recente pauta da federalização de toda força policial; que de um lado, enfraquece o aspecto federativo do país, ou seja, o poder dos governadores sobre as polícias, e por outro, aumenta a permeabilidade ideológica do bolsonarismo nas corporações (o que já vem em franca ascensão e seria uma espécie de nacionalização das milícias).

A resposta das pessoas que estão nos grupos fanáticos é de que isso seria uma “atitude de homem”, uma vez que diariamente a mídia alimenta a fogueira da classe política, e a solução para a descrença na representatividade é o delírio messiânico. Para seus eleitores, Bolsonaro assume as rédeas de uma polícia corrupta, torna-se efetivamente um Comandante em prol do reacionarismo nacional. E como tudo dentro dessa lógica, as polícias também passariam a ser governadas somente para os seus eleitores. Isso já fareja uma movimentação golpista visando 2022? Talvez.

Mas lembra do que disse sobre Crivella? Independentemente do que seja possível construir sob a égide do neofascismo, a sua inserção na política nacional é medida sobre a sua capacidade silenciosa e ágil de deterioração das instituições. Uma espécie de epistemologia dos cupins ou liturgia da metástase.

No Rio de Janeiro mesmo, enquanto escrevo este texto sob a ubíqua ordenação do crime, e talvez o seu maior laboratório (não à toa o curral eleitoral do Capitão), existe uma articulação entre narcotraficantes, milicianos e pastores evangélicos para a formação do que seria o chamado “Complexo de Israel”, a comunhão máxima do controle narcomiliciano-neopentecostal no direito de ir e vir de mais da metade da população de uma cidade. O crescimento desses grupos e a sua capacidade camaleônica de articulação dentro do mundo do crime é impressionante. Existe uma ideologia, existe uma teocracia como premissa, a construção de monopólios armados, a perseguição religiosa, a afirmação dos valores bolsonaristas à mão bruta.

E não teria como terminar esse espanto sem lhe perguntar: existe a possibilidade do diálogo? Mais do que existir, é urgente que ele comece a acontecer?

A destruição segue seu voo de Brigadeiro: nessa guerra semiótica, todos os nossos veículos, argumentos e valores são perseguidos. A surdez é a melhor metralhadora da outra trincheira.

12 de fevereiro de 2021, domingo

De: Eduardo Reis de Mello

Para: Flávio Morgado

Flávio,

Você acerta quando aponta que o principal desse movimento é a destruição. Não no sentido de acabar com as coisas tal como elas vinham ocorrendo, mas em ressignificar tudo o que for possível. A “desterritorialização” é fundamental para o pensamento reacionário, tanto quanto para o revolucionário. É aí que entram as bombas semióticas. As pessoas questionam as regras do jogo a todo momento de forma que nada mais está dado como certo. No fundo é a lógica do Eduardo Bolsonaro, fecha-se o supremo com um cabo e um soldado. ´

É engraçado pensar que de uma maneira tosca, guiada por uma intuição de primeiro semestre de faculdade, os bolsonaristas apontam falhas reais no sistema político. Eles sabem que essa conversa de contrato social é para boi dormir. Só que são coisas que a gente vai dando como certa e vai vivendo a vida. Como se a lei fosse uma coisa tangível, como se a democracia fosse real e irrevogável. Eles entenderam melhor do que a esquerda que o Brasil é ultra legalista, que as palavras e as coisas estão em planos distintos. Aí fica fácil brincar com as palavras, com as verdades, com os valores morais… Alguma coisa mais primeiranista do que o Caio Copolla e o Alexandre Garcia passando pano para qualquer coisa que o governo fizer ou venha a fazer? Porque a questão é que nós sabemos bem que para essa gente os fatos são aquilo que eles quiserem ver. Que ao mesmo tempo em que acusam a todos de articularem “narrativas”, eles mesmo estudam o Joseph Campbell para planejar a jornada do herói, do Mito (!?). Diagramas da jornada dos heróis são constantemente postadas nos grupos para mostrar aos “leitores”, em que ponto da narrativa estamos, e com isso o que se pode esperar nos próximos capítulos. Vale o cinismo, pois além de saberem que espalham desinformação, sabem que a esquerda servirá como uma caixa de ressonância que fará ecoar enlouquecidamente os despautérios que criam.

Eles entenderam que nesta época de youtubers e reality shows, o que pesa é o show muito mais do que a realidade. Sua autenticidade é forjada e nem por isto deixa de ser potente em um mundo que carece tanto de coisas autênticas. Isso foi uma coisa que seus oponentes fizeram de errado: o ridículo do Flávio Bolsonaro enxugando as lágrimas com a bandeira do Brasil ou do presidente comendo pão com leite condensado e dando entrevistas em uma mesa improvisada com uma prancha de bodyboard, atinge em cheio nosso povo tão acostumado com a puerilidade das novelas televisivas e seus eternos retornos. Nossa crise é também uma crise estética (talvez sobretudo estética na medida em que as aparências articulam a moral e a política). Quando falamos que o Brasil vive uma crise de representação, além do sentido da democracia representativa, podemos pensar também nessa crise estética. O índice, o punctum, surgem justamente onde está o erro. Ao invés das narrativas da Petra Costa e da poética melosa cinematográfica do PT, o que tem pegado são coisas que de tão caricatas se tornam um pastiche de um pastiche. Baudrillard ao quadrado. Mas com ele as pessoas têm a sensação de estar captando a autenticidade “por elas mesmas”, como aquela tia que olha e diz “pobre do moço, ele se complica todo para falar as coisas e acaba falando um monte de besteiras, mas eu vejo que lá no fundo tem uma pessoa boa”. E a genialidade do marketing do Bolsonaro é trabalhar com essa camada “lá no fundo”, que obviamente é falsa, através de camadas sobrepostas de uma estética tosca.

Então quando vemos a estética bolsonarista de chinelos e camisa do Palmeiras pensamos: “Isso é muito caricato, as pessoas vão saber que ele está fazendo de propósito”, e realmente as pessoas sabem. Só que além de elas não ligarem, entendem seu desafio ao bom gosto como um desafio ao sistema. E claro, como todo líder populista, o Bolsonaro é um significante vazio. Nele cabe tudo o que as pessoas quiserem ver. Sua figura é tão plástica que entram desde desenhos de Photoshop onde seu rosto substitui um herói da Marvel, até o de cristo, morrendo por nós.

O que a gente vê nesses grupos é angustiante não porque aquelas pessoas vivam em um mundo paralelo, mas porque esse mundo delas está se atualizando a todo momento em nossa realidade e dá a impressão de que não podemos fazer muita coisa. Eu acho que podemos. Acho que precisamos deixar de lado as tentativas inocentes e estéreis de tentar “traze-los para a realidade”. Por mais que julguemos que nosso mundo corresponde melhor ao “real”, ele vale tanto quanto o seu poder de viralizar, de contaminar. E para contaminar é preciso invadir as bolhas alheias. Veja, se tem uma coisa que fica muito clara para mim nestes grupos é que vivemos em uma guerra de informação (Infowars), e a esquerda nem se quer se deu conta que seu Pearl Harbor foi bombardeado. A realidade não se defende sozinha (ela nem existe por si só). Se queremos viver em um mundo que herdamos dos iluministas, será preciso lutar. Não será o caso de usar as táticas sujas da desinformação, mas de empenhar nosso espírito na reterritorialização de um mundo que (talvez felizmente) já não poderá ser como era antes. É hora de mostrar que aprendemos alguma coisa em nossos livros e performar estratégias melhores. Invadir seus grupos pode ser um começo.

Nota

[1] Sleeping Giants é um grupo de ativistas digitais que combate discursos de ódio e desinformação de forma anônima na internet.

 
 

Episódio do canal Prato Feito, do sociólogo Eduardo Reis de Mello

Eduardo Reis de Mello é sociólogo e trabalha como agente da Polícia Federal desde 2012. Mantém o canal Prato Feito, no YouTube, onde fala sobre a extrema-direita no Brasil. Mestre em Linguagem pela UEPG, atualmente cursa o doutorado em Ciências Sociais Aplicadas na mesma universidade e o doutorado em sociologia na Universidade Federal do Paraná.

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