Dezoito meses sem casa

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Por Marizilda Cruppe, Projeto Colabora – 

Três bolsas, 86 quartos, 6 mil votos, 12 quilos e um punhado de histórias para contar

E lá se vão 18 meses sem endereço fixo. Parece que a vida toda foi assim, que nunca tive um CEP ou uma casa para chamar de minha. Meus pertences, que há 6 meses julgava reduzidos, agora parecem um exagero. Três bolsas? Para que preciso de tantas? O desapego vai tão de vento em popa que, às vezes, soa até esquisito. Será que não me apego mais a nada?

Finalmente, acho eu, consegui conviver com diferentes preferências político-partidárias, vindas de pessoas honestas, justas, generosas, seguidoras das leis. Foi bom observar outras bolhas. Gostaria que todos pudessem viver bem e com qualidade, com direitos iguais e dignidade, dentro da bolha que escolhessem.

Os lugares onde repousei somam 86 e variam das redes às camas king size. Minha coluna se adapta bem a todas, diga-se. Dividi o mesmo cômodo com Bia, Pedro, Rafael, Bruno, Ramona, Clarissa, Cristiano, Wayne, Danicley, Gilberto, Ilana, Gilson, Henriqueta, Taís, Karina, Fernanda, Claudecir, Bianca, Beatriz, Eliza, Maria Lúcia, Bernardo, Roberto, Beto, Stefan, Nico e mais um tanto de gente boa que lembro dos rostos e das conversas, mas que minha memória de fotógrafa me impede de lembrar os nomes. Minhas anfitriãs e meus anfitriões, estenderam lençóis limpos, afofaram travesseiros, penduraram redes, fizeram comidinha fresca e cuidaram para que eu me sentisse em casa. Seus filhos e filhas, cães e gatos, me fizeram chamego e me divertiram.




Imperatriz, Maranhão. Foto de Marizilda Cruppe
Imperatriz, Maranhão. Foto de Marizilda Cruppe

Não são nem dois anos e parece uma vida. Talvez pela intensidade dos acontecimentos: cheguei numa cidade no dia de um atentado, fotografei para três livros e outros dois estão a caminho, ganhei uma bolsa (com a ajuda de mais de 6 mil votos) para realizar um projeto pessoal, outro segue firme graças a recursos próprios e à generosidade da família Berman-Rincón. Dei palestras, entrevistas, me diverti, me emocionei e aprendi com amigos e fotografados, conheci cidades novas, voltei a lugares que me são caros, revi amigos e amigas, fortaleci amizades e fiz amizades novas. As injustiças desse mundo me revoltaram e me moveram, interna e externamente. Andei de canoa, voadeira, barco grande, aviãozão, aviãozinho, carrão e carro velhinho. Nadei em mar, rio, cachoeira. Subi montanha. Perdi a voz no frio e derreti no calor. Atendi a vários pedidos e deixei um bocado deles sem resposta. Aproveito para pedir desculpas, não fiz por mal.

No departamento dos perdidos está um par de havaianas que ficou em Santa Maria do Uruará, onde o tanque de gasolina rachou, o combustível vazou e não havia onde comprar. O padre doou combustível para que eu conseguisse seguir viagem e me acompanhou num trecho da estrada porque sabia que eu ficaria presa na lama encharcada pela chuva forte da véspera. Não deu outra, e ele rebocou meu carrinho, coitadinho, que não tinha tração. Uma pulseira de prata e um pingente de olho grego que a Xênia, mãe da Roberta, trouxe da Grécia repousam agora em algum cantinho da terra dos Munduruku, na beira do Tapajós. O lindo rio que, por enquanto, está livre de hidrelétricas, graças à mobilização do povo Munduruku e a ajuda de uma campanha do Greenpeace. Há um colar de prata com um pingente de coração que não tenho ideia de onde perdi, um par de galochas que ficou na floresta amazônica, outro par de botas com meias azuis, minha cor favorita, que ficou na beira do rio Uruará e mais alguns itens que pensei em anotar para fazer essa lista, mas acabei esquecendo.  No fim das contas, não foram perdas, pois cada coisinha dessas cumpriu seu ciclo em minha companhia e agora segue seu rumo.

Rio de Janeiro, RJ. Foto de Marizilda Cruppe
Rio de Janeiro, RJ. Foto de Marizilda Cruppe

Fui devorada por mosquitos e carrapatos (duas mordidas estão sem sinal de melhora há dois meses). Devorei pratos típicos e engordei, parei de fazer atividade física, fazer as unhas agora é raro. Errei um monte e me esforcei para aprender. Finalmente, acho eu, consegui conviver com diferentes preferências político-partidárias, vindas de pessoas honestas, justas, generosas, seguidoras das leis. Foi bom observar outras bolhas. Gostaria que todos pudessem viver bem e com qualidade, com direitos iguais e dignidade, dentro da bolha que escolhessem, já que parece que a extinção das bolhas ainda está longe.

Chego neste ano e meio de estrada ainda com a Fotografia escolhendo meu destino, sem fazer planos nem pensar em como será a semana seguinte – exceção para o período de Ano Novo, definido há pouco. A conta das experiências positivas fecha no azul e o destaque fica para as mulheres que tenho conhecido. Corajosas, empreendedoras, generosas. Preocupadas com o coletivo. Enxergam além de seus umbigos. Lutam contra a sua própria invisibilidade e a de suas causas. Mulheres tão inspiradoras que me moveram a articular a criação da Associação Brasileira das Mulheres Profissionais da Imagem. Graças às minhas andanças, já aconteceram reuniões em Curitiba e Maceió, no próximo mês em São Paulo e no Rio, em dezembro na região Norte. A estrada ensina, motiva, oxigena, compartilha, mata a sede e a fome. Eu só não preciso ir com tanta gula. Doze quilinhos a mais já está bom, né?

Belo Horizonte, MG. Foto de Marizilda Cruppe
Belo Horizonte, MG. Foto de Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Foi jurada do concurso World Press Photo duas vezes, ministra curso de narrativas fotográficas e colabora
com organizações como Greenpeace, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, New York Times e Trip Editora.​ Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, desigualdade social, saúde e meio-ambiente.

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