Por Graça Lago, jornalista
No dia 1º de abril de 1964, eu tinha 12 para 13 anos. Assim que a rádio Mayrink Veiga, último bastião de resistência, saiu do ar e começaram a transmitir a mensagem do comando do golpe, eu e minha irmã mais velha, a Vanda, colocamos na janela o primeiro pano preto que encontramos, um vestido de mamãe. Na rua Bolívar, só havia duas janelas com panos pretos, a nossa e uma outra quase na esquina da Leopoldo Miguez.
Eu e Vanda ficamos debruçadas na janela, olhando a movimentação da rua, quando a vizinha do 502, senhora de bem, mui respeitada, lançou uma grossa cusparada em nós, uma menina de 12 anos e uma jovem de 18 anos, aos gritos de “Morra a canalha comunista!”. Era uma vizinha com a qual convivemos durante anos da vida, o que me chocou muito; jamais esquecerei.
Minha mãe, a brava Zeli, estava na rua, resistindo, falando com a população entorpecida. Deve ter visto a cena, porque entrou em casa como uma leoa, pedindo que a gente saísse da janela, defendendo as crias.
1964 pegou em cheio o nosso núcleo familiar.
Meus irmãos mais novos, Kakalo e Mariozinho (Mario Lago Filho), foram para Campo Grande assim que os sinais do golpe surgiram no horizonte. A casa dos avós maternos já estava por conta de Titia Neném, que assumiu as rédeas depois da morte de minha avó Mafalda. Os dois ficariam em Campo Grande durante boa parte do ano, mas não me lembro quanto.
Também não me recordo mais detalhes daquele dia, que certamente foi tenso. Sei que, no dia 2 de abril, quando já estava bem óbvio o que nos esperava, fui passear no Méier, com a Tai e a Ciça (Maria Angela Lima Baptista), filhas do seu Naldir Laranjeira e da d. Zilma, minhas mais que amigas da infância, vizinhas no Edifício Jab (nº 86).
Tenho a impressão de que fui tirada de casa por precaução; era criança. Dos irmãos, ficaram só os mais velhos – Vanda e Nal (Antonio Henrique Lago)
Voltei à noitinha, ainda a tempo de encontrar tudo revirado, com o rastro da invasão que levou para a prisão meu pai e meu avô materno, o Henrique. Uma pilha de livros atirados no canto da sala, que escapou da limpa feita pela repressão, tinha no alto, esquecido, um livro de arte da então União Soviética; minha mãe explicou que a tropa que invadiu o apartamento olhou e achou que era americano.
Aliás, a invasão da casa teve muito do Febeapá/ Festival de Besteira que Assola o País (expressão cunhada pelo genial jornalista Sérgio Porto, que, com o heterônimo de Stanislaw Ponte Preta, escreveu as crônicas da ditadura a partir de 1966). Vou contar uma.
As portas lá de casa jamais eram trancadas (não por acaso, papai escreveu os versos “Eu quero uma casa no meio do mundo/ com gente chegando de todo lugar/ a porta já era, a janela nem foi, não tem frente, nem fundos/ que a casa que eu quero, no meio do mundo, é pro mundo morar”). Bastava um leve toque na maçaneta para a porta abrir e o visitante entrar. Era comum grupos de amigos chegarem para um café surpresa, com um bolo que a minha mãe fazia com gosto. Acredito que era um quê da vida suburbana implantada em plena Copacabana.
E assim estavam as portas lá de casa naquele 2 de abril de 1964, quando os agentes da polícia invadiram o apartamento. A porta dos fundos dava de frente para um banheiro. Quando os policiais se atiraram sobre ela, para arrombar o suposto bunker do comunista Mário Lago, não encontraram a resistência esperada. Ao contrário, a porta escancarou e eles foram parar aos tropeços dentro do referido banheiro.
Surpresos e vexados, interpelaram mamãe, dizendo que aquilo era um perigo, que a casa podia ser facilmente invadida por ladrões. “Até hoje, não tinha sido”, respondeu Zeli, a mais terrível barreira contra qualquer força policial. A velha não era fácil no enfrentamento à repressão.
Naqueles dias, havia muita histeria no ar, discurso em defesa da “família”, contra a “corrupção”, contra o comunismo, velha artimanha para assustar e insuflar as massas apavoradas, tementes e crentes.
A maioria da classe artística se posicionou imediatamente contra o golpe. Poucos, vis, fuleiros, rasteiros, correram como cachorrinhos a lamber as botas da ditadura, como César de Alencar, que alimentava denúncias contra os grandes artistas da época, como papai, Zezé Gonzaga, Nora Ney, Jorge Goulart, Gracindo Junior (o então jovem filho de Paulo Gracindo), Vanda Lacerda, Paulo Roberto, Dias Gomes, Hemilcio Fróes, Gerdal Santos e todos os demitidos e perseguidos da Rádio Nacional, alcançados pelo ato institucional número 1. O ódio à Cultura e à Arte é traço comum às ditaduras.
Muitos amigos de ocasião se afastaram da nossa família, como “o diabo foge da cruz”. Mas foram muitos também os gestos solidários, como lembrou outro dia a Sheila Penna (outra amiga de infância mais que amiga).
Papai foi preso com uns poucos trocados no bolso, que deixou com mamãe, antes de ser embarcado no camburão. Não dava nem pra terminar a semana, ainda mais que papai foi sumariamente demitido da Rádio Nacional (sem direito ao pagamento) e as despesas explodiram, acrescidas de muitas idas e vindas ao DOPS, Ilha das Flores e Presídio Fernandes Viana, pra tentar visitar papai e vovô e levar mantimentos, idas e vindas aos escritórios de advogados, ou para levar denúncias às redações dos raros jornais não alinhados ao golpe, ou para reunir com familiares de presos, ou para mobilizar apoios …. tudo isso com mamãe sempre levando os filhos, que a luta cotidiana foi a nossa mais intensa formação política; nós, as crias, sempre acompanhamos solidariamente todos esses momentos, na alegria e na tristeza.
Nisso, o dinheiro e a dispensa minguaram, às vezes ameaçando o que colocar à mesa. Só não faltou, graças à solidariedade de amigos fiéis, vizinhos e companheiros. Inúmeras vezes, ao abrir a porta dos fundos (que permaneceu sem tranca, apesar da invasão dos ladrões), lá estavam uma cesta básica, o pão, o leite, o café, o papel higiênico, o sabonete, as frutas, frequentemente deixados no anonimato. Esses eram momentos de festa.
Assim se passaram 58 dias, até que papai voltou pra casa, 58 dias que ele registrou em um livro – “1º de abril, estórias para a História” e em um poema
XAMEGO-SÍNTESE PARA QUEM TIVER PREGUIÇA DE LER O RESTO, QUE É DETALHE SÓ
Me invadiram a casa toda
(e eram mais de dez)
me viraram tudo nela
(e eram mais de dez)
me cercaram o edifício
(e eram mais de dez)
me impediram o elevador
(e eram mais de dez)
me esvaziaram a calçada
(e eram mais de dez)
me pensando de dar tiro.
Eram mais de dez, eram mais de dez,
eram mais de dez. De dez.
Me meteram em tintureiro
(e eram mais de dez)
me levaram para o Dops
(e eram mais de dez)
me enfiaram numa lancha
(e eram mais de dez)
me largaram numa ilha
(e eram mais de dez)
me enfiaram noutra lancha
(e eram mais de dez)
me trancaram no presídio.
E eram mais de dez, mais de dez,
eram mais de dez.
Juntou dia atrás de dia
(e eram mais de dez)
quando fez cinquenta e oito
(e eram mais de dez)
me voltaram para o Dops
(e eram mais de dez)
me botaram numa sala
(e eram mais de dez)
me sentaram e perguntaram:
(e eram mais de dez)
“o senhor sabe por que foi preso?”
