Dia do cortador de cana ou o trabalho avesso à vida nos canaviais brasileiros

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A história do corte de cana confunde-se com a história do Brasil

Por Lucas Bezerra, compartilhado de Brasil de Fato




16 de janeiro é o dia alusivo ao cortador de cana
16 de janeiro é o dia alusivo ao cortador de cana – Rogério Paiva / Ascom MPT

A monocultura da cana-de-açúcar foi a primeira atividade econômica levada a efeito pela Coroa portuguesa no Brasil. Sua história confunde-se com a do Brasil. Há cinco séculos, encontram-se entrelaçadas entre o grande canavial, a casa-grande e a senzala, o senhor de engenho e o escravo, o usineiro e o canavieiro assalariado. Em toda essa história, uma contradição flagrante: de um lado, latifundiários com poderio político e econômico; de outro, uma massa de trabalhadores submetidos a condições de trabalho extraordinariamente aviltantes. “Tudo planta de cana, para uma só boca de usina”, como escrevera no poema O Rio, de 1953, o centenário poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-2020).

A cana-de-açúcar foi e continua a ser um grande negócio dos poderosos no campo brasileiro. Observado o panorama atual, o Brasil mantém a condição de grande produtor e exportador mundial de cana e de seus principais derivados, o açúcar e o álcool. Com 430 usinas e destilarias, que empregam em média 1,5 milhão de trabalhadores, nosso país desfruta do posto de maior produtor de açúcar do planeta e de responsável por 45% da produção mundial de etanol. Considerada a média dos últimos anos, são mais de 30 milhões de toneladas de sacarose e 27,5 bilhões de litros de álcool etílico produzidos anualmente, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Os antigos senhores de engenho, reconfigurados posteriormente em usineiros, são hoje cada vez mais empresários que tentam construir a qualquer custo uma autoimagem moderna. Propagandeiam de modo insistente noções como inovação tecnológica, prosperidade e modernização, facilmente confirmadas nos segundos de “agro é pop, agro é tech, agro é tudo” da Rede Globo. Esses empresários, nacionais e estrangeiros, exaltam os avanços científicos, a aquisição de equipamentos com tecnologia de ponta e a adesão à uma suposta agenda sustentável. Verifica-se, no entanto, uma rota de colisão nesse caminho: o “moderno” agronegócio canavieiro no Brasil possui nas condições e relações de trabalho no corte manual da cana a expressão mais visível de sua degradação e de seu “atraso”.

16 de janeiro é o dia alusivo ao cortador de cana. Esta categoria, durante o período da safra, soma um total mediano de 300 mil trabalhadores no país.

O setor canavieiro é um dos que mais registra a presença de trabalhadores em condições de escravidão, expressas em mecanismos como o trabalho forçado e a servidão por dívida. Segundo dados da ONG Repórter Brasil, no período de 2003 a 2013, por exemplo, quase 11 mil canavieiros foram resgatados de condições de escravidão. Dado igualmente impactante, fruto de pesquisa da Comissão Pastoral da Terra, é o de que 22% do total de trabalhadores rurais localizados em condições de escravidão no Brasil atua no universo da cana-de-açúcar. Estes dois dados ilustrativos, apenas, permitem-nos concluir quão curta é a distância, no que diz respeito ao trato com os trabalhadores, entre os moderníssimos usineiros do século XXI e os senhores de engenho do século XVI.

Em sua ampla maioria, os cortadores de cana são trabalhadores do sexo masculino, negros, com faixa etária entre 19 e 40 anos, com pouca ou nenhuma escolaridade e sem qualificação profissional. A atividade do corte manual é pesada, repetitiva, realizada a céu aberto, no calor, entre a poeira e a fuligem da cana em longas jornadas de trabalho. Esses trabalhadores são diariamente afetados por alguns riscos: a exposição a fertilizantes e agrotóxicos e a radiações solares; acidentes de trabalho decorrentes de equipamentos de corte ou de animais peçonhentos como escorpiões e cobras; lesões por esforço repetitivo; precárias condições de alimentação e saneamento etc.

Via de regra, os canavieiros são subcontratados sazonalmente, pois apenas uma quantidade pequena de trabalhadores permanece empregada no período de entressafra. Costumam encarar a atividade que desempenham – cortar cana – como sendo a única possível e isto se deve ao fato de que as exigências relacionadas ao nível de escolaridade têm sido cada vez mais recorrentes no mercado de trabalho.

Um aspecto que realça a exploração do trabalho dos cortadores de cana é o pagamento por produção, isto é, por tonelada cortada. Esses trabalhadores não recebem um salário referente à quantidade de horas de trabalho no canavial, mas à quantidade de cana cortada. No estado da Paraíba, por exemplo, paga-se pouco mais de sete reais por mil quilos da cana cortados. Sim, sete reais para uma tonelada cortada com uma foice. Esta modalidade de salário funda-se sobre a lógica do “quanto mais eu trabalho, mais eu recebo”. Assim, instiga o trabalhador a atingir o limite físico suportado pelo corpo. Estimula, além do mais, enorme competitividade entre os trabalhadores em torno do “quem corta mais”. As usinas, em geral, costumam dar prêmios mensais aos “campeões de produtividade”, ou seja, aos que beiram a morte por cortar mais cana – alguns chegam a cortar vinte toneladas ao dia.

Durante a década de 2000, a luta dos trabalhadores canavieiros resultou em algumas conquistas civilizatórias em relação à década de 1990. Em muitas realidades, especialmente no Nordeste e no Sudeste, assistiu-se a uma crescente formalização dos contratos de trabalho; ao fim da exploração do trabalho de crianças e adolescentes nos canaviais; eliminou-se a presença de intermediários entre canavieiros e usinas, até então responsáveis pelo recrutamento e pelo pagamento dos trabalhadores; presenciou-se a obrigatoriedade de distribuição de equipamentos de proteção individual; e os “gaiolões”, carros de carregar boi que até os anos 1990 transportavam os cortadores à lavoura, foram em sua esmagadora maioria substituídos por ônibus.

Estas conquistas, no entanto, não são definitivas ou inabaláveis. A feroz ofensiva das classes dominantes tem comprovado isso, dentre outras medidas, através da subtração de direitos arduamente conquistados pela classe trabalhadora do Brasil. A Reforma Trabalhista aprovada no governo golpista de Michel Temer atinge os trabalhadores do campo e da cidade. No campo, incluindo as zonas canavieiras, já se observa uma pressão ao rebaixamento salarial. Demissões e terceirizações também estão na mirada. A Reforma da Previdência, recém aprovada pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, também atacam a todo vapor os trabalhadores rurais: aumenta o tempo de contribuição; exige que o trabalhador contribua quando ele não ganha nada; prejudica especialmente a aposentadores das mulheres. Os donos do poder e do dinheiro querem mais trabalho e menos direitos para quem trabalha.

Esta situação expõe a falência do modelo de desenvolvimento agrário no Brasil, organizado sob o comando do latifúndio e do agronegócio: trata-se de um modelo impotente, concentrador, produtor de desigualdade. Os cortadores de cana somente experimentam as trágicas condições e relações de trabalho aqui elencadas porque não lhes resta outra alternativa de sobrevivência. É cortar cana ou morrer de fome. De fato, somente a construção de outro projeto para o Brasil – que leve adiante a reforma agrária – possui a capacidade de alterar significativamente a condição dos cortadores de cana.

Sobre o doce da cana, há muito suor salgado. É muito trabalho e pouco descanso. Muito trabalho e pouca vida. A usina de moer cana e gente segue a todo vapor. Um velho pesquisador disse: é o vapor do diabo. Ele está coberto de razão.

* Doutorando em Serviço Social pela UFRJ, Militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.

Edição: Monyse Ravenna

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