O “dia do índio” está sendo comemorado de forma inédita em Maricá, no litoral fluminense. Hoje é o último dia para o cadastramento dos indígenas das duas aldeias guarani do município aptos a receber mensalmente, através do Cartão Mumbuca Indígena, o correspondente a R$ 300,00 na moeda social do município que circula apenas no comércio da cidade.

O secretário de Economia Solidária de Maricá, Diego Zeidan, acredita que a medida irá beneficiar os 120 índios residentes no município. De acordo com ele, os índios poderão poupar uma parcela desse dinheiro para melhorar a renda da comunidade e, ainda, investir parte desse capital na ampliação empreendimentos sociais de turismo e agricultura familiar já existentes em suas aldeias.indios cartão mumbuca (2)

Zeidan explicou que essa indenização permanente tem também um significado “histórico e político.” Ou seja, a recomposição da dívida social do Estado Brasileiro de modo a possibilitar a inserção indígena na economia e na vida social, por meio de uma compensação mínima mensal.
“Essa foi a forma que encontramos para pedirmos desculpas pelos crimes cometidos pela sociedade envolvente contra os índios deste país, que a 518 anos tem sido vítimas de um genocídio a conta gotas”, afirma Zeidan. Ele espera que outros municípios e estados sigam o exemplo de Maricá. “Este povo teve sua terra invadida, foi escravizado, massacrado e praticamente dizimado. Temos por obrigação reparar este erro”, disse Zeidan, explicando que “os índios que hoje moram em Maricá,“chegaram até aqui por que foram expulsos ou foram obrigados a sair das suas terras localizadas em outros municípios da região”.




Enquanto isso não acontece, Maricá criou o cartão Mumbuca Indígena, desdobramento do Cartão Mumbuca, a moeda digital social do município, maneira encontrada pela prefeitura para operar seus programas de transferência renda. Por ela, a prefeitura paga R$ 110 (ou 110 mumbucas) para 16 mil famílias com renda de até três salários mínimos. A moeda digital é aceita por 267 estabelecimentos comerciais do município.

Exemplo da violência

Foi a violência dos brancos que levou os guaranis a se fixarem em Maricá, que até então não tinha índios morando do município. De fato, segundo o cacique da Aldeia Mata Verde Bonita, Darci Tupã, sua tribo foi obrigada a abandonar Niterói depois que, no dia 18 de julho de 2007, a aldeia da praia de Camboinhas, foi reduzida a cinzas em consequência de um incêndio.

Na época, o diretor da Centro de Etno-Conhecimento Sócio Cultural e Ambiental Caueré (Cesac), Arão da Providência, deu entrevistas denunciando que o fogo teria sido intencional. De acordo com Previdência, “os indígenas saíram para uma apresentação e deixaram as crianças, que viram um grupo chegando para tacar fogo”. Ele contou que empreiteiros do setor mobiliário queriam retirar os índios daquele local para construção de mais imóveis no território sagrado para os índios. A Cesac acompanhava o assentamento dos indígenas na área, junto com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Para o cacique Tupã, ”se o incêndio foi uma tragédia ele também nos mostrou que, apesar de ser raro, existem brancos generosos como era o caso do pessoal da prefeitura e do povo de Maricá”. O cacique recordou que foi graças a intermediação do ex-prefeito Washington Quaquá que o grupo espanhol que estava construindo um resort em Maricá permitiu que “fizéssemos nossa aldeia em Maricá em uma pequena área dessa grande área de terra onde o complexo turístico seria construído”.

Atualmente, aproximadamente 120 índigenas vivem no município, distribuídos entre as aldeias Mata Verde Bonita e a Sítio do Céu (Pevaé Porã Tekoa Ará Hovy Py), esta no distrito de Itaipuaçu.

Uma das lideranças da aldeia Mata Verde Bonita, a índia Jurema Nunes de Oliveira, disse que uma das propostas que os índios estão discutindo é que os beneficiários do cartão apliquem parte do dinheiro em projetos coletivos, como artesanato , turismo e na agricultura, ampliando a nossa produção para comercializar o excedente. Na aldeia já existe uma loja que vende o artesanato produzido pela etnia.
Segundo Jurema, nos finais de semanas e feriados dezenas de turistas visitam a aldeia para conhecer e comprar o artesanato dos guaranis “e as ervas medicinais que cultivamos”. Na aldeia já existe um pequeno restaurante que funciona apenas nos finais de semana. Além disso, os guaranis recebem excursões de escolas da cidade e de outros municípios.

Jurema Nunes de Oliveira
Jurema Nunes de Oliveira

O dinheiro do cartão Mumbuca deverá custear um projeto ambicioso revelado pelo cacique Darci Tupã a Marco Zero Conteúdo: a ampliação do pequeno restaurante e a construção de ocas destinadas aos turistas que desejarem passar feriados e pequenas féria na aldeia em contato com a natureza “saborear peixe assado, verduras colhidas na hora ou um franguinho caipira e um biju de tapioca”
O cacique conta que a construção de ocas-hotéis e um teatro arena para apresentações da cultura indígena é um projeto que poderá ser feito em parceria com a prefeitura. Os índios ficariam encarregados de deverão construir a estrutura rústica (feita com argila, bambu e palha) e a prefeitura destinaria os recursos para manutenção do espaço.

O idioma como ferramenta de preservação

A líder guarani Jurema Nunes de Oliveira, que ensina a língua guarani mbya entende que, para que os índios possam continuar resistindo e sendo respeitados pela sociedade, é fundamental que “a nossa cultura e nosso valores sejam preservados pelas novas gerações”.

E, em seu entender, “a melhor arma para isso é que nossas crianças aprendam nosso idioma desde o momento em que começam a falar. Jurema ensina o idioma para os alunos do primeiro ao quinto ano na escola Para Poty Nhe’ Já disse que “ língua guarani mbya é difícil de ser esquecida. Tem gente que diz que nós não somos índios. Mas nós trabalhamos com isso, vivemos com isso, é a nossa cultura”, explica. Segundo Jurema, como forma de incentivar as crianças a aprender o seu próprio idioma, entre eles só falam o mbya.

O empenho dos guaranis em preservar seu idioma chamou a atenção  do Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio) que, em agosto do ano passado, enviou uma missão para conhecer a aldeia que tem como prioridade absoluta que as gerações futuras não esqueçam o seu próprio idioma. Para o professor Domingos Nobre, do Instituto de Educação de Angra dos Reis (IEAR) da Universidade Federal Fluminense (UFF),“falar a língua materna indígena mantém as crianças pensando em guarani e sonhando em guarani”. De acordo com o site da ONU, o professor trabalha com ensino escolar, formação de professores e construção de currículos escolares em comunidades indígenas guarani.

Ouvidos de mercador

O recado de Zeidan que disse esperar que os municípios e os governos estaduais sigam o exemplo de Maricá também serve para o Governo Federal, que até hoje faz ouvidos de mercado ao relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluído em 2014. Nele, está a recomendação para que o Estado brasileiro peça formalmente desculpas aos índios pelos crimes cometidos pela ditadura contra eles.

O jornalista Rubens Valente, autor do livro Os fuzis e as flechas, acredita que Comissão Nacional da Verdade foi uma importante contribuição para romper a invisibilidade de quatro décadas dessa questão em publicações oficiais do governo. Como exemplo ele citou o dossiê Direito à memória e à verdade, produzido pelo Palácio do Planalto em 2007, que não traz sequer uma linha sobre os indígenas. O dossiê teve por objetivo resgatar a memória, a verdade e a justiça sobre o que realmente aconteceu com os mortos e desaparecidos durante o período da ditadura militar.

Em contrapartida, até o momento todas as medidas preconizadas pela CNV sobre os índios nunca foram tiradas do papel, “numa falta de sensibilidade grotesca” do governo federal desde 2014, quando foi anunciada a conclusão dos trabalhos. Valente lembra que a CNV indicava, acima de tudo, um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro, fato mais básico e elementar, mas isso não foi realizado até o momento.