Dia dos Namorados na vida de uma viúva de 12 anos

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A única obscenidade que conheço é a violência (Jim Morrison)

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, toca numa ferida que teimam em mantê-la sangrando, a ferida da violência. Ferida que é cutucada na rua e até mesmo numa sala de aula e que não tem idade para começar a ser aberta




Beija-Flor, 12 de junho de 2024.

Prezado editor, o texto desta semana vem marcado pela violência que testemunhamos cotidianamente. Não só nas escolas, mas também em seus arredores, em comunidades em que é sempre ou bola ou búlica.


Não pretendo aqui lucrar com as mazelas de nossa sociedade, como sempre me pareceu ser o caso de programas como os do Datena e seus diluidores. É que por vezes a realidade nos esbofeteia a cara de uma maneira impiedosa. Em suma, eu tive que escrever a história que chegou a meus ouvidos devido à sua generalidade. Ocorrências semelhantes têm sido relatadas com grande frequência.


O caso desta aluna de fato ocorreu. Aproveitei a data de hoje, alterei os nomes, criei o espaço ficcional por onde a história poderia se desenrolar, criei um final; mas o fato é que tenho uma aluna do sexto ano do ensino fundamental que só agora voltou a frequentar à escola. Isto é, mais ou menos depois de quase cinco meses de ano letivo. Ficou-se sabendo que ela se envolveu com um rapaz que era traficante que foi morto muito provavelmente pelos justiceiros da região.


Diante desse quadro, como é que fica o professor? Pergunta difícil que envolve saber lidar com o fim da inocência. Essa menina tem doze anos e já é viúva.


Triste história de Maria
Depois de muito tempo afastada, a aluna Maria M. retornou à escola justamente hoje, no Dia dos Namorados. A princípio, Maria não se interessou muito pelo papo do professor de inglês, que disse à turma que a data caía em fevereiro nos Estados Unidos. “Babaquice”, ela pensou enquanto mexia no celular. Mais tarde, entretanto, veio-lhe um comichão nas entranhas de lembranças dele, do José J, o JJ, vulgo Pateta.


No início do ano, Pateta e Maria viveram uma tórrida relação de amor. Para algumas pessoas, a vida louca do tráfico é um grande afrodisíaco, não se sabe bem porquê. Deve ter alguma relação entre arma e falo, vá saber. Enfim, enquanto puderam, os dois viveram enroscados na cama do quartinho que ainda cheirava a cimento.

A ferramenta sempre por perto, pois quem é bandido tem que ter mil olhos sempre atentos, tem que desconfiar de tudo. Tem que estar preparado para matar. Porque a vida é curta.


Ainda havia as drogas. Muitas. Para a venda e para consumo próprio. Era difícil sentir fome em tais circunstâncias, mas quando havia bastava ligar para arranjar uma quentinha maneira, graúda. Havia também os celulares, os das melhores câmeras. Selfies e Selfies, nus na cama, com o fundo sendo a parede sem reboco.


Maria aprendeu com Pateta algo que poderia vir a ser útil: a reconhecer celulares, modelos e preços. Aprendeu um pouco também a respeito de motos. E inconfessavelmente até para si mesma, ela aprendeu a gostar de armas. Armas, não revólveres caras-de-cão enferrujados, não garruchas de merda.


O sonho deles era montar a maior boca da região. Vender pra caralho. Fazer uma fortaleza. Fazer Baile de Favela. Lidar com gente graúda. Ficarem famosos e respeitados e temidos na região, sair nos jornais.

Maria sonhava vagamente com joias, com dentes de ouro, com tatuagens no fiofó que nem a da Anitta; Pateta, com armas de mira a laser e com outras mulheres, porque traficante não tem uma mulher só.

Não deu tempo. A polícia mineira parou o carro preto de onde saíram homens encapuzados e armados de fuzil certa noite lá pelas quebradas e foi pegando um por um. Pateta ainda tentou fugir mas não deu. Levou muito tiro, morreu de olhos e boca abertos, sob uma enorme poça de sangue.

Maria teve o cabelo raspado e levou como corretivo um tiro na mão para aprender a saber com que ela estava lidando.


Na região boa parte do pessoal sabe quem foi e a mando de quem, mas o pessoal prefere não optar. No fundo acha certo, era o momento de passar o cerol no pequeno tráfico que ia se formando na comunidade recém-criada de gente honesta e trabalhadeira. Tem que se arrancar o mal pela raiz. Deus não dá asas à cobra.


Na sala de aula, alguns meninos da sala resolveram chamar Maria de “Pão Careca”, justamente na hora em que Maria se distraía com a régua (ela costumava medir o pau do Pateta, para ver se ele tinha crescido desde que se juntaram).

Às pilhérias nada inocentes dos colegas, ela respondeu de pronto com os piores palavrões possíveis. Palavrões que para muitas pessoas não soariam bem em uma criança de doze anos. Só que essas pessoas não conhecem a Maria. Ela só não lhes encheu de porrada porque a mão muito provavelmente iria sangrar tanto quanto a cara deles.


Ela já sabe o que vai fazer antes da vingança. Vai juntar dinheiro, talvez vender um dos muitos celulares do Pateta, fazer uma camiseta em homenagem ao grande amor de sua vida. Uma camiseta com os seguintes dizeres encimando a foto romântica do casal: “Saudades Eternas”.
Tudo tem a sua hora.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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