Diálogo quase monólogo

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Mais um belo texto na coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Já passou por essa de estar fazendo um trabalho e alguém ficar no seu ouvido falando, falando e falando, com você não respondendo á altura para não atrapalhar o seu serviço e não criar mais problemas ainda?

Daí você lembra Hemingway, “são necessários dois anos para aprendermos a falar e sessenta para aprendermos a calar”. Pois é, veja aqui um caso de quem não aprendeu a parar de falar enquanto o outro só que terminar seu trabalho.




“Cappelli*:

Eu sempre desconfiei dessa coisa de vacina. Fez-se muito alarde. Eu acabei perdendo dinheiro. Sobreviverei a este novo governo, é claro. Assim como outros, ele também passará. É preciso ter fé.

Bucco*:

(Em pensamento, para não criar discordâncias) E os que perderam a vida no trampo, o que falar deles? Uma noite brilhante de lua cheia lança sua luz indiferente à catástrofe.

Cappelli:

Não é isso tudo o que estavam dizendo por aí, não. É coisa de gente manipuladora, sem escrúpulos. De minha parte, orgulhosamente não leio nenhum jornal nem vejo tevê. Só tem porcaria – até o futebol. Você viu o jogo ontem? Que desfaçatez de jogo, esse pessoal só quer mídia. Nenhum meio de comunicação é confiável. Democraticamente tenho direito de escolher a melhor fonte de informação. Tem muita coisa escondida nos atuais acontecimentos que é de deixar a gente de queixo caído. E muita coisa falsa. Só não vê quem não quer.

Bucco:

Você tem razão.

Cappelli:

Já terminou?

Bucco:

Ainda não.

Cappelli: Esse tipo de serviço requer uma habilidade artesanal. Eu mesmo não conseguiria fazê-lo. Você tem um dom, Bucco. É coisa de tradição, passada de pai pra filho, só pode ser.

Bucco:

(Em pensamento, para não gerar atritos) Sim, aprendi o ofício com meu pai.

Cappelli:

Mas a dar preço você aprendeu com você mesmo, não é?  Como não sei fazer, nem ao menos sei do que se trata, fico à mercê. É sem escapatória, doloroso que nem picada de agulha, mas pelo menos a gente sabe pro que serve. Eu já sou burro velho, não aprendo mais nada desse tipo de serviço. Mas as crianças na escola deveriam aprender um pouco disso tudo aí. Isso é que é reforma, o resto é balela, conversa pra boi dormir, discussão inócua. É questão de autonomia, é quase um aditivo a mais saber um ofício manual ou outro, gera valor agregado. É preciso saber se mexer, ter habilidades, saber de antemão o rumo dos acontecimentos.  

Sei que nem todo mundo dispõe de recursos necessários, é preciso saber planejar, investir, mesmo que o banco não lhe conceda crédito. Em suma, ainda vale o velho ditado: “De grão em grão, a galinha enche o papo”. Pode ser necessário em uma viagem para o exterior, nunca se sabe quando irá se viajar  abroad (para fora do país). Viajar para o  exterior é uma experiência única, ajuda a formar o caráter, é assim que grandes homens conhecem grandes mulheres que irão conceber grandes filhos da pátria. Eu fiz a minha primeira viagem aos quinze. Você acredita que eu sei colher flores?

Bucco:

(Acena com a cabeça, demonstrando forçosamente espanto) Está pronto.

Cappelli:

Nossa! Ficou como novo. Excelente. Vou-lhe recomendar a amigos. Mão-de-obra assim está ficando cada vez mais escassa no mercado. Ninguém quer trabalhar duro. E é bom saber um ofício. As escolas públicas de caráter profissionalizante, além de  boas maneiras, deveriam ensinar aos jovens as manhas da jardinagem, rudimentos de mecânica, reparos em celulares, cursos de atendimento a turistas nacionais e estrangeiros, com ênfase em três idiomas, pelo menos. O inglês já não conta mais, que país é esse que quer avançar sem o devido conhecimento da língua inglesa? Nem a China conseguiu.

Aliás, aprender chinês, nessa toada, pode vir a ser algo importante também. Mas, cá entre nós, eu sempre desconfiei desses chineses, tem uma coisa errada ali, não me surpreenderia se fosse finalmente divulgada uma notícia assim, provando por A + B que eles foram os responsáveis por muita coisa esquisita que vem acontecendo ultimamente. Nada me tira isso da cabeça.  (pega da carteira duas notas de cem) Fique com o troco.

Bucco:

(Sem titubear) Falta mais vinte.

Cappelli:

(Espantado) Tudo isso? Está certo. Fazer o quê. Você quase me pega desprevenido. Sabe que com a gente a garantia é a nossa palavra e um aperto de mão, nada mais. (Tira da carteira mais vinte reais)

Bucco:

(Entregando ao Cappelli as folhas da garantia pelo serviço) Está certo. Passar bem.

Cappelli:

Passar bem. Espero não passar por aqui tão cedo.

Saem cada um para seu canto.

Cappelli começa a praguejar contra si mesmo por não ter pedido um desconto. Afinal ele aprendeu desde cedo que negociação é uma arte que precisa ser praticada sempre que surgir a oportunidade. Mas depois, mais conformado, pesou tudo outra vez e chegou à conclusão de que vale a pena pagar um pouco mais em troca de exclusividade. Ele não resolveu o problema? Sim. Depois o senhor C. largou de mão tudo o que lhe ocorreu, uma vez que queria deixar a cabeça fresca para o grande negócio que, se Deus quisesse e sua habilidade de convencimento permitisse, fecharia à tarde. Suspirou como quem matasse um leão por dia.

Por sua vez, Bucco se retirou para o fundo escuro da oficina amassando as notas no bolso. Por um instante, lhe ocorreu uma estranha idéia: se aquelas notas fossem falsas, ele poderia quebrar a cara de Cappelli sem a menor cerimônia, sem a mínima culpa. Acertaria um soco bem na ponta do queixo do infeliz ou lhe espetava a chave Phillips para ver se o sujeito tem sangue de barata ou não. O pensamento, entretanto, foi se depositando no fundo do seu cérebro como o açúcar que fica no fundo do copo. Eram quase onze da matina. Sentiu fome. E, com as mãos ainda sujas de graxa,  foi comer um sanduíche de mortadela com o café que talvez não tivesse esfriado ainda.”  

*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna nem sempre sensível com os problemas do próximo

*Buccopersonagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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