Por Renato Bazan, publicado em Revista Fórum –
Para que serve uma entrevista na qual o único objetivo é desestabilizar o entrevistado?
O jornalismo brasileiro sofreu um apagão na noite desta segunda-feira (25). Não há outra forma de definir a tempestade de estupidez e machismo em que se transformou o Roda Viva sob o comando de Ricardo Lessa.
O que deveria ser ser uma sabatina com a pré-candidata à presidência Manuela D’Ávila, do PCdoB, tornou-se a vitrine da malícia reacionária que domina a nossa imprensa. Por uma hora, Manuela se viu cercada de jornalistas menos interessados em seu projeto e mais em vê-la tropeçar nas perguntas-pegadinha normalmente direcionadas à esquerda brasileira. Não a levaram a sério. Interromperam-na centenas de vezes.
Foi o equivalente midiático de um fuzilamento, ao vivo e em cores. No pelotão, estavam o próprio Lessa (mediador), Vera Magalhães (Estadão/Jovem Pan), Letícia Casado (Folha), João Gabriel de Lima (Exame), Joel Pinheiro da Fonseca (não-jornalista do Insper), e Frederico d’Avila (diretor da Sociedade Rural Brasileira) – uma composição questionável, no melhor dos casos, por representar somente tons do conservadorismo nacional.
Mas talvez, sob o comando de um profissional competente, esse consórcio de oponentes apresentasse à Manuela a chance de confrontar os preconceitos que a impedem de crescer como candidata. Numa realidade em que o mediador do Roda Viva fosse Heródoto Barbeiro ou Paulo Markun, as perguntas teriam chance de serem respondidas, e não seriam transformadas em armadilhas para render manchetes nas redes sociais.
A maior vítima da hostilidade desta noite não foi Manuela D’Ávila, mas o próprio Roda Viva, e com ele o departamento jornalístico da TV Cultura.
Para que serve uma entrevista na qual o único objetivo é desestabilizar o entrevistado? Estariam transmitindo de algum porão do DOPS? O grau de desleixo foi tamanho que o próprio mediador pôs-se a rir sarcasticamente de sua convidada quando desistiu de provocá-la. Repetiu 5 vezes a mesma pergunta: “Você considera Lula inocente?”. Em todas ouviu a mesma coisa, e não a deixou terminar.
Essas foram duas tendências inescapáveis, inclusive: a obsessão por Lula, e o silenciamento sistemático de Manuela no meio de suas falas. O terceiro bloco, pior de todos eles, foi quase todo dedicado ao ex-presidente, e uniu os 6 da bancada em um coro de acusações sem o menor auto-controle. A determinada altura, Manuela disparou atônita: “Vocês gostam de falar mais do que eu”. Por isso, foi chamada de “advogada do Lula”. Foi o momento mais vulgar. A entrevista adquiriu ares de Inquisição, como se quisessem extrair dela a confissão que não conseguiram do líder do PT. Como se quisessem transferir a ela o peso de suas acusações.
Tentaram também colocar palavras em sua boca. A ela foi perguntado nada menos que três vezes se desistiria de sua candidatura, apesar de negar com firmeza. Machismo exemplar, sob um fino véu investigativo. Criaram paralelos impossíveis entre sua candidatura e os governos de Stalin e Mussolini, ditadores mortos há mais de 60 anos, ancorados em bordões de WhatsApp que deixariam qualquer tio do pavê orgulhoso. Em dois diferentes momentos, Frederico D’Ávila, que participa da campanha de Jair Bolsonaro, tomou minutos para falar da “vida miserável na União Soviética”, e finalmente desaguou na mãe de todas as falácias: “o fascismo é de esquerda”.
Nenhum membro da bancada foi melhor. Envergonharam o ofício do jornalismo ao basearem suas perguntas em leituras ignorantes e fake news encontradas em redes sociais. O menino Joel, desesperado, acusou-a de criar “discurso de ódio” por criticar a nave-mãe de todos os discursos de ódio, o Movimento Brasil Livre. Minutos antes, havia acusado Manuela de mentir sobre estatísticas que ele mesmo desconhecia. Em outro momento, Frederico tentou desandar uma resposta sobre feminismo para um bate-boca sobre castração química. Vera Magalhães encarnou a ignorância de seus leitores depois de pedir colaborações no Twitter.
Nenhum jornalista é obrigado a aderir a uma ou outra ideologia, mas espera-se do mais medíocre que saiba se portar diante de uma câmera. Que não precise perguntar: “É machista elogiar sua beleza quando estamos discutindo política?”, como fez Ricardo Lessa. O nível foi este: abismal.
Manuela D’Ávila sai gigante do programa, após delimitar seu espaço em meio a um inferno de desonestidade intelectual. Já sobre a TV Cultura, pode-se dizer o contrário. Se os próprios jornalistas perderam a capacidade de pensar com coerência, que esperança temos de um debate civilizado até outubro? Este Roda Viva foi o retrato da ruína de nossa profissão.