Digo sim ao cinema e choro

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E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, mais uma vez nos leva ao cinema, nos fala de um filme que todos deveriam ver: “Ainda Estou Aqui”.

Vamos à resenha de nosso cronista:




“Você ainda está aí, não foi ver o filme “Ainda estou aqui” (Dir. Walter Salles, 2024)? Olha, que está todo mundo comentando a história de Eunice. Não perca. Não é barato, não; mas é cinema dos bons. Fiz algumas anotações aqui sobre as minhas impressões. Vale mais a pena ter visto o filme antes, devido à possibilidade dos comentários conterem spoilers.

Primeira parte
A primeira parte do filme me incomodou. Elenco jovem, lembra “Malhação”, apesar da Super 8, da trilha sonora, dos figurinos, da reconstituição de época. Acho que esse é o xis do problema também: tudo está certinho demais: dois e dois são quatro. Os carros, mesmo velhos, estão muito bem conservados. São carros de colecionador fazendo sua parte na edição de arte, dando um toque de real às cenas.


Descontando a minha implicância, a primeira parte nos prepara, em termos de contraste, para a segunda. Creio que a luz do filme seja uma transposição do clima com que Marcelo Rubens Paiva aborda este período de sua vida. Não podemos nos esquecer de que o filme é uma adaptação do livro homônimo dele.

Segunda parte
A segunda parte é arrebatadora. Fernanda Torres/Eunice e sua luta para manter a família unida contra o regime militar e contra a burocracia. Porões da tortura. É o “Isso eu não posso te informar” ou coisa do tipo. É o “Eu preciso da assinatura dele” ou coisa do tipo.


Levam o marido, o provedor, embora para supostos esclarecimentos na sua frente e não se pode fazer nada. Nem se noticiar direito na imprensa pode. Eunice já não sorri. O filme, em resumo, é sobre o sequestro do sorriso de uma mulher, de sua vida em suspenso, de como ela se reconstrói das cinzas.


Além disso, é um filme político. Muito embora não queira se dizer com todas as letras, talvez com medo do filme ser tachado de panfletário. Talvez por isso se fale tanto em “milicos”, sem dar nomes aos bois. Por isso não se fale em que apoiou o golpe militar. Ainda assim, é um filme político. É de esquerda. E é brasileiro. Enfim, como um filme dessa natureza seria bem no desgoverno Bolsonaro, para quem tudo é ideológico?

Rubens Paiva era engenheiro. Que país estava sendo construído por outras beiradas? Que pau a pique é esse?


A cena no banco é sintomática de um país burocrático (e como isto conta: é o país que vai perdendo a delicadeza dos anos de Juscelino). Mesmo conhecendo Eunice pessoalmente, o gerente nega um pedido de saque por falta da assinatura do marido dela. E ela não pode dizer ao desgraçado do gerente do banco que o marido dela está desaparecido. Quer dizer, é uma situação quase kafkaniana que Eunice tem que enfrentar com astúcia.


Em outra cena mais adiante, ela recebe uma pequena ajuda de um amigo, sócio de Rubens, para vender um terreno (ou coisa do tipo: era o projeto de uma casa de campo?) é um jeitinho brasileiro para resolver um problemão. Eunice precisa de dinheiro.
Finalmente, Eunice toma a decisão de se mudar do Leblon, bairro filmado como uma espécie de paraíso ameaçado pelo vôo dos helicópteros dos milicos.


Por derradeiro, Eunice toma a decisão de voltar a estudar e se torna, além de viúva do engenheiro Rubens Paiva, homem que foi assassinado pelo regime militar, uma advogada ilustre ligada à preservação das terras dos indígenas.


É uma vergonha não termos a coragem de Eunice. E de Dilma Roussef, diga-se de passagem.
O ator que faz Marcelo Rubens Paiva me impressionou muito. A forma com que ele segura a caneta para autografar um livro é um detalhe doloroso. Eu me lembro de ter lido o livro dele: “Feliz ano velho”. Lembro-me da cena do piiiiiiiiiiim que ele ouve ao bater a cabeça em uma pedra em um mergulho à beira de um rio. E talvez venha a ler um dia o livro em que o filme se baseia.


Terceira Parte
A cena com Fernanda Montenegro é extraordinária. O Alzheimer da Eunice. O Alzheimer de minha mãe. A identificação dá um choque na cabeça da gente. “Ela tem dias bons, dias ruins”, alguém fala no filme a respeito da condição mental de Eunice. É o que meu irmão e eu falamos de minha mãe.


Chorei horrores. A luta da gente é pra isso. É pra isso? Não sei. Só sei que é arrebatadora a cena em que Fernanda Montenegro move os lábios ao ver uma reportagem na televisão sobre o regime militar em que aparecem as fotos de Herzog, Stuart Angel e Rubens Paiva. E na foto de família ela sorri mais uma vez.

Em tempo
Há um involuntário acento irônico ter uma estação de metrô da linha 2 com o nome de Engenheiro Rubens Paiva, ali bem pertinho da Pavuna. Irei tirar uma foto minha sorridente naquela estação. Sorrirei amarelo, por suposto. A estação é perto, bem perto de onde trabalho. E bem longe do Leblon.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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