A presidenta Dilma já viveu momentos bastante duros na sua vida. É de fato uma guerreira. Uma sobrevivente de um tempo em que muitos dos que poderiam liderar o Brasil de hoje e de décadas passadas acabaram ficando pelo caminho, abatidos pela tirania dos pais e avós de muitos que estão hoje buscando destruir o Brasil de amanhã.
Pela tirania daqueles que controlam as riquezas e boa parte de todas as instituições e que não aceitam de maneira alguma que se construa uma nação menos desigual e mais fraternal.
Esse povo quer sangue, violência, subalternidade, escravidão. Eles são de alguma forma herdeiros dos que lutaram a favor do AI-5 e contra a abolição. Eles defendiam a tortura como forma de impedir o que denominavam de comunismo, mas que não era nada além de garantir eleições democráticas e um pouco de justiça social. E nunca derramaram uma lágrima pela miséria. Sempre consideraram natural favelas sem esgoto, crianças famélicas, homens e mulheres desdentados.
E gritaram nas redes e nas ruas contra a legalização do emprego doméstico, contra o aumento do salário mínimo, contra o bolsa família, contra cotas para negros e contra qualquer ação afirmativa. Eles sempre foram e continuam sendo contra qualquer avanço civilizatório. Porque sempre sobreviveram e se tornaram o que são alimentados pela barbárie e pela desigualdade.
Esse Brasil é muito forte, muito duro de ser enfrentado e se aproveita de qualquer deslize dos que ousam diminuir sua força para destruir qualquer esperança. Ao mesmo tempo, esse país é muito sedutor e abre suas portas para que alguns se refestelem com os rapapés acumulados em décadas de exploração, fazendo com que vários se acomodem e esqueçam o que um dia foram ou pelo que um dia lutaram.
Há exemplos aos montes tanto de assassinatos, como de destruição de reputações ou ainda de traições. O risco de se tornar um cadáver, um bandido ou um patife é imenso quando se dá a cara a bater para mudar o rumo de uma história que por vezes se parece mais com uma fatalidade. Há um imenso Brasil que não se aceita de todos. Que não se permite de todos.
O jogo é bruto. Sempre foi bruto. Mas fica mais bruto de tempos e tempos. E esse é um dos momentos difíceis deste enfrentamento.
Claro que não é por acaso que neste 7 de setembro a situação não só do governo Dilma, mas de todas as lutas por direitos e mais democracia estejam mais frágeis do que em outros dias da celebração da dita Independência.
Há uma série de fatores que contribuem para isso. Entre eles, erros e crimes praticados por gente que lutava do lado de cá. Erros de condução política e econômica do governo. Burocratização de espaços de luta, como sindicatos e ONGs que na década de 80 e 90 foram muito importantes na construção de lideranças e consciência política.
E talvez o mais significativo, uma destruição interna e externa a conta gotas do PT, que por muito tempo foi entendido por boa parte do povo como o projeto partidário que poderia fazer as transformações que o Brasil do andar de baixo necessitava. E que se por um lado está sendo destruído por ousar enfrentar o sistema muito mais do que outros partidos políticos, por outro está na berlinda por aceitar jogar o jogo do esquema de sempre.
Mas o que Dilma tem a ver com tudo isso? Qual é a esfinge que a presidenta precisa decifrar? Como ela pode sair dessa sinuca de bico que também ajudou a construir para si mesma?
Dilma e seu entorno precisam entender que o problema do país neste 2015 é também econômico, é também fruto de uma crise política institucional, mas é fundamentalmente histórico. O Brasil da Casa Grande resolveu ir pra cima. Aproveitou que o meio campo e a defesa do lado de lá estavam desorganizados e foi para o ataque. E neste momento está ganhando de goleada. Porque construiu uma narrativa segundo a qual tudo que é avanço precisa ser eliminado.
Neste contexto, um governo que foi eleito por milhões que não fazem parte desta turba precisa fazer é criar pontes com um outro Brasil que quer ir além. Que topa até um sacrifício pontual para não viver um retrocesso cruel. Precisa retomar a aliança simbólica com esse Brasil que tem lutado em cada esquina a favor dos direitos humanos, da defesa da igualdade étnica e de gêneros, por moradia digna, por saúde e educação de qualidade, por preservação de direitos trabalhistas.
É só com esta aliança clara que Dilma vai sair dos tais 7% de aprovação e iniciar o resgate de um projeto de governo para o qual foi eleita. Mas Dilma vai precisar entender que isso terá de ser feito a despeito de uma crise na economia e na política institucional. Que essa crise só passará se ela vier a se mostrar um pouco mais forte, ampliando alianças para além de Brasília e da política tradicional e construindo pontes com amplos setores da sociedade progressista e democrática. Da sociedade que luta contra esse outro Brasil que quer sangue há décadas.
E Dilma terá de fazer isso convivendo com os grunhidos do Brasil que sempre grunhiu. Não existe outra alternativa.
E o pior, terá de fazer isso num contexto em que a economia vai decrescer agora. E tende a ficar estagnada em 2016. Por isso, se o governo mantiver sua pauta apenas na perseguição de melhores números macroeconômicos, Dilma cairá.
E cairá porque a elite já exige cortes na área social, sabendo que esse é o melhor caminho para levar para a rua contra ela aqueles que a elegeram. Cairá porque os movimentos e o partido que a elegeram não conseguirão reunir ninguém em sua defesa, porque já não terão o que defender. Cairá porque os políticos que lhe exigem hoje os cortes serão os primeiros a usar os cortes para articular discursos pedindo seu impeachment.
Dilma não tem muita margem de manobra na agenda que se inicia neste 7 de setembro. Ela precisa firmar uma aliança com um Brasil que é muito maior do que Brasília. Com um povo que é muito maior do que a elite. Com o movimento social que é muito mais vibrante do que o preconceito organizado em desfiles patéticos.
Dilma e seu entorno precisam se desafiar a sair da toca e olhar para os lados, colocando na ordem do dia uma pauta de enfrentamento simbólico que mude a agenda e reorganize as bases sociais que a elegeram.
Ou Dilma faz isso ou será devorada.
Não é nada simples, mas está longe de ser impossível.
Não há receita pronta, mas há ingredientes à disposição.
Não é a maioria atual que quer isso, mas é muito mais gente do que os tais 7%.
E se Dilma organizar suas trincheiras apostando na defesa dos direitos e do que já foi feito na última década, mostrando que mesmo num contexto difícil é possível garantir que o andar de baixo não vai perder nada. E reduzir a inflação, o que parece natural, buscando preservar empregos com um dólar mais alto, o que por um tempo também não faz mal a ninguém, a economia vai se ajeitando aos poucos e o dia seguinte será diferente.
Dilma tem que ouvir e conversar com os maiores do PIB, Dilma tem que ouvir e conversar com o Congresso, Dilma tem que ouvir e conversar com o seu vice-presidente, mas Dilma tem que fazer isso em nome dos que a elegeram e do seu compromisso histórico. Do que a fez chegar até aqui. Da vida que praticamente entregou em nome da defesa de valores e ideais que garantiram que o capitalismo, mesmo hegemônico, fosse menos pior hoje do que em outros tempos.
Dilma, neste dia da tal Independência, precisa olhar pra história. E buscar mudar o que parece um quase destino. Ou daqui a pouco será tarde.