Diretoras e roteiristas negras não têm vez em longas-metragens brasileiros

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publicado em Projeto Colabora – 

Cineasta avalia pesquisa da Ancine que mostra que homens brancos seguem comandando cinema nacional

A diretora Mariana campos entrevista a filósofa Helena Theodoro, no filme "Tia Ciata" (Divulgação)
A diretora Mariana campos entrevista a filósofa Helena Theodoro, no filme “Tia Ciata” (Divulgação)

Nesta quinta-feira, 25 de janeiro, a Ancine (Agência Nacional do Cinema), apresentou dados do estudo “Diversidade de Gênero e Raça nos lançamentos brasileiros de 2016” , que foi desenvolvido pela Coordenação de Monitoramento de Cinema, Vídeo Doméstico e Vídeo por Demanda da Superintendência de Análise de Mercado (CCV/SAM) da Agência.

O universo da pesquisa consiste na análise dos 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016, segundo dados do Sadis (Sistema de Acompanhamento da Distribuição em Salas de Exibição). Cada filme teve as funções de Direção, Roteiro, Produção Executiva e Elenco classificadas quanto a identidade de gênero e raça/cor. E, as funções de Direção de Fotografia e Direção de Arte tiveram classificação quanto a identidade de gênero, exclusivamente.




Ou seja, em um país onde a população negra corresponde a mais de 53% da população brasileira, as produções cinematográficas que recebem financiamento público e possuem distribuição comercial,  são dirigidas e roteirizadas majoritariamente por homens brancos.

É a primeira vez que a Ancine apresenta recortes de raça/cor em uma pesquisa, algo que o Geema (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj) já havia realizado em 2014, quando lançou uma pesquisa intitulada ”A cara do cinema nacional”. Foi  exatamente  uma análise de gênero e cor das funções de roteiro, direção e elenco na produção dos filmes brasileiros de ficção, lançados comercialmente entre os anos de 2002 e 2012. A pesquisa apontou que a maioria dos filmes foi dirigido e roteirizado por homens brancos e que não houve a atuação de nenhuma mulher negra nas funções de direção e roteiro.

Mas será que realmente não existem mulheres negras diretoras e roteiristas no Brasil? Nós existimos sim e somos muitas,

Infelizmente, de lá pra cá não tivemos mudanças neste cenário. De acordo com esta pesquisa da Ancine, dos 142 longas-metragens analisados, 59,9% dos roteiros foram assinados por homens brancos, 16,2%  por mulheres brancas, apenas 2,1% por homens negros e, nenhum filme foi roteirizado por uma mulher negra. Na função de direção, a falta de diversidade fica ainda maior com 75,4% dos filmes dirigidos por homens brancos, 19,7% por mulheres brancas, apenas 2,1%  por homens negros. E, em pleno ano de 2016, nenhum filme foi dirigido por uma mulher negra.

 

Ou seja, em um país onde a população negra corresponde a mais de 53% da população brasileira, as produções cinematográficas que recebem financiamento público e possuem distribuição comercial,  são dirigidas e roteirizadas majoritariamente por homens brancos.

Mas será que realmente não existem mulheres negras diretoras e roteiristas no Brasil? Nós existimos sim e somos muitas, porém o que acontece é que os recursos públicos permanecem concentrados em uma determinada parcela de produtores e não são distribuídos de forma igualitária.  Sobretudo, não há um investimento efetivo em políticas de Ações Afirmativas de raça e gênero no audiovisual, logo, não é por acaso que nós não aparecemos nos dados apresentados.

É preciso compreender que essas políticas são fundamentais para reduzir as desigualdades historicamente acumuladas em nossa sociedade e que, através delas é que teremos avanços na igualdade de oportunidades para os profissionais da área. A exemplo disto, em 2012 foi lançado pela Secretaria do Audiovisual (SAV) e o Ministério da Cultura (MINC) o edital “Curta Afirmativo”, fruto das Ações Afirmativas e que tem como objetivo financiar produções idealizadas por realizadores negros.

Em 2014, segunda edição deste edital, fui uma das contempladas e juntamente com outra mulher, Raquel Beatriz, roteirizamos e dirigimos o curta-metragem documental ‘‘Tia Ciata’‘. O filme possui temática feminina e sua equipe foi composta majoritariamente por mulheres negras. Por conta deste edital, muitos realizadores negros tiveram a oportunidade – até então rara, de ter uma obra financiada, de expôr suas narrativas e subjetividades nas telas e, de circular com suas produções pelos festivais de cinema do Brasil e do mundo. Tanto o edital “Curta Afirmativo” quanto o edital “Longa Afirmativo”, da SAV e do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), só existem pelo enorme esforço de profissionais negras e negros que lutam há muitos anos por estas Ações Afirmativas no âmbito da cultura.

No audiovisual negro, o saudoso cineasta e ator Zózimo Bulbul, falecido em 2013, é um dos grandes precursores dos avanços vividos pelo cinema negro nos últimos anos. Idealizador do Centro Afrocarioca de Cinema – um espaço de formação, produção e difusão do audiovisual negro – e, do Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe, importantíssima janela que exibe diversas produções realizadas por cineastas negros.

Estreia do filme "Tia Ciata" no Encontro Zózimo Bulbul - Brasil, África e Caribe (Lumena Aleluia)
Estreia do filme “Tia Ciata” no Encontro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe (Foto Lumena Aleluia)

Em 2017, ano em que o evento completou 10 anos de existência, o Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe atingiu número recorde de inscrições. Foram 98 filmes nacionais, 68 selecionados e aqui, um marco muito significativo e inédito que, a maioria destes filmes foi dirigido e roteirizado por mulheres negras brasileiras. Olha aí as mulheres negras no audiovisual!

Seguindo nestas iniciativas inclusivas, destaco também a APAN – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, uma instituição de fomento, valorização e divulgação de realizações audiovisuais protagonizadas por negras e negros. Criada em 2016, tem por um de seus principais  objetivos elaborar e cobrar a implementação de políticas de ações afirmativas no setor do audiovisual. Em novembro de 2017, a ANCINE anunciou então a criação da Comissão de Gênero, Raça e Diversidade, tendo por objetivo desempenhar atividades relacionadas à promoção da inclusão, da diversidade e da igualdade de oportunidades no âmbito de atuação da Agência.

Medidas como estas contribuem para avanços significativos contudo, acredito que esse cenário só vai tomar um rumo diferente a partir do momento em que profissionais negras(os) ocuparem os espaços de debate e decisões sobre essas políticas. A cineasta e presidente da APAN, Viviane Ferreira comenta em um de seus artigos que “O debate sobre as Políticas de Ações Afirmativas no Setor Audiovisual precisa ser sistêmico, exatamente, porque o racismo institucional é sistêmico e endêmico. Por isso, cada instância precisa dar conta daquilo que lhe cabe e, nesse processo, é importante compreender que não se debate sobre a vida de “quelé” sem a presença de “quelé” – trecho do texto ”Ações Afirmativas: um espinho na coluna dorsal do setor audiovisual?”. Ou seja, não adianta debater políticas de Ações Afirmativas sem a nossa presença (profissionais negras e negros do audiovisual)! Além disso, devemos passar a ocupar cadeiras nas comissões julgadoras dos editais, nos conselhos, comitês e diretorias das instituições de financiamento.

Portanto, somente a partir de uma mudança estrutural como esta, aí sim, dados como estes apresentados pela Ancine poderão ser totalmente diferentes.  Afinal, nós existimos e temos muitas histórias para contar. Seguimos na luta!

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