Autor de pedido de anistia ao povo Krenak, procurador aponta omissão do Estado para reconhecer violações na ditadura
Por Alice Maciel, compartilhado de A Pública
Instalada no final do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, a Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos que tem por objetivo reconhecer e reparar os danos causados pela ditadura militar, fará o primeiro julgamento de reparação coletiva da história, no próximo dia 2 de abril. Na pauta estão dois casos envolvendo povos indígenas: os Guarani-Kaiowá (Mato Grosso do Sul) e os Krenak (Minas Gerais).
Em entrevista à Agência Pública, o procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais Edmundo Antonio Dias Netto, autor do requerimento de anistia ao povo Krenak – o primeiro de reparação coletiva, apresentado à comissão há nove anos –, explica a relevância do julgamento inédito e narra o histórico de omissão do Estado brasileiro para responder às violações contra os indígenas, que sofrem até hoje consequências do regime militar.
“O Estado brasileiro precisa confrontar-se com a gravidade das violações que cometeu contra os povos indígenas no nosso país. Reconhecer esses malfeitos é o primeiro passo para uma reparação”, destacou o procurador. Ele explica que além do pedido de desculpas – uma das formas de reparação presentes na atuação da comissão –, é possível que sejam emitidas recomendações para outros entes federativos e órgãos públicos, que poderão “atuar para o desvendamento da verdade e preservação da memória, para a adoção de medidas de não repetição e reformas institucionais”.
Durante a ditadura militar, os Krenak foram torturados, presos e submetidos a maus-tratos, trabalho forçado e ao deslocamento compulsório de seu território. Três episódios marcaram os ataques contra eles nessa época: a criação da Guarda Rural Indígena (Grin); a instalação do Reformatório Krenak, que era um presídio para indígenas, em Resplendor (MG); e o deslocamento forçado de índios para a fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas após a extinção do Reformatório Krenak.
O pedido de reparação ao povo Krenak ficou parado na Comissão de Anistia durante os governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Em 2022, na gestão de Jair Bolsonaro (PL), foi indeferido. “Isso ocorreu no contexto dos enormes retrocessos na proteção de direitos humanos que o nosso país viveu. Viveu porque o nosso passado autoritário se faz presente ainda hoje, como todos nós sabemos e pudemos presenciar nos últimos anos”, observou Dias Netto.
A reparação coletiva defendida pelo MPF desde 2015 só se tornou possível em março do ano passado, após uma mudança no regimento interno da Comissão de Anistia. Até então, o órgão previa apenas a reparação individual às vítimas da ditadura. Outra alteração no regimento da comissão permitiu também a revisão de decisões que já tinham sido indeferidas, como o caso dos Krenak.
Além do requerimento de reparação à Comissão de Anistia, o MPF move uma Ação Civil Pública contra a União, o estado de Minas Gerais e contra o major reformado da Polícia Militar de Minas Manoel dos Santos Pinheiro. Conhecido como capitão Pinheiro, ele foi personagem-chave nas denúncias de violações de direitos humanos contra os Krenak, mas morreu em 2023 sem ser julgado na esfera criminal pelo crime de genocídio, pelo qual foi acusado.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Em março de 2015, o senhor apresentou um pedido de anistia coletiva do povo Krenak que será julgado em abril pela Comissão de Anistia. Gostaria que o senhor explicasse a importância histórica dessa reparação.
O Estado brasileiro precisa confrontar-se com a gravidade das violações que cometeu contra os povos indígenas no nosso país. Reconhecer esses malfeitos é o primeiro passo para uma reparação. Para além do pedido de desculpas – que é uma das formas de reparação possíveis na atuação da Comissão de Anistia –, há também a possibilidade de que a comissão emita recomendações para outros entes federativos e para órgãos públicos que podem, ao cumprir o que lhes seja recomendado, atuar para o desvendamento da verdade e preservação da memória, para a adoção de medidas de não repetição e reformas institucionais, assim como para a reparação traduzida em formas de satisfação às coletividades que sofreram as violações, cometidas no contexto da ditadura militar.
Por que só agora, nove anos depois, o caso será analisado?
O pedido de anistia política dos Krenak foi apresentado em março de 2015 ao então ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo], quando ainda havia o entendimento geral de que a anistia política somente deveria ser concedida em caráter individual. Nessa época, a Comissão de Anistia, que ainda integrava a estrutura do Ministério da Justiça, havia anistiado politicamente, em 2014,16 indígenas da etnia Suruí-Aikewara, mas essa anistia tinha sido concedida em caráter individual.
Já o pedido que apresentei em 2015 pelo MPF trouxe uma nova interpretação, que considerava a possibilidade de concessão de anistia política a título coletivo. Seja pelo sentido do artigo 232 da Constituição de 1988, seja pela forma de auto-organização dos povos indígenas, seja pela cosmovisão indígena, seja porque estamos falando de bens que têm titularidade coletiva, faz mais sentido pensar em formas de reparação coletivas, para violações que foram sentidas por todo um determinado grupo, como no caso das graves violações cometidas contra os Krenak.
Nessa mesma linha, de que a afetação diz respeito a toda a coletividade, a 6ª Câmara de Coordenação do MPF – que é o colegiado do Ministério Público Federal que coordena a atuação na promoção dos direitos indígenas e dos demais povos e comunidades tradicionais – emitiu, em abril de 2017, uma nota técnica sobre a possibilidade de concessão de anistia política a título coletivo, considerando o caso concreto dos Krenak.
Mas, em 2017, já vivíamos um momento de instabilidade política e a Comissão de Anistia, enquanto órgão do Poder Executivo, não avançou na interpretação que ainda conferia a esse tema. Na verdade, o requerimento de anistia política coletiva do povo Krenak, que já estava parado desde que foi apresentado em 2015 [governo Dilma Rousseff], continuou sem andamento no governo seguinte [de Michel Temer], até que foi indeferido em 2022 [durante a gestão de Jair Bolsonaro]. Obviamente, isso ocorreu no contexto dos enormes retrocessos na proteção de direitos humanos que o nosso país viveu. Viveu porque o nosso passado autoritário se faz presente ainda hoje, como todos nós sabemos e pudemos presenciar nos últimos anos.
Em março do ano passado, a atual composição da Comissão de Anistia alterou seu regimento interno, assegurando o direito de requerer a reconsideração das decisões da comissão, com o objetivo de restaurar a legalidade administrativa dos procedimentos que tivessem resultado no indeferimento dos pedidos que traziam. O novo regimento da Comissão de Anistia passou também a prever de modo expresso a possibilidade de anistia coletiva.
O que motivou a mudança do regimento interno da Comissão de Anistia? Gostaria que o senhor me contasse, se possível, os bastidores da mobilização, tanto do Ministério Público como do povo Krenak junto ao governo federal para que fosse feita essa alteração.
É importante dizer que o mérito da alteração de entendimento da Comissão de Anistia é exclusivamente de seus integrantes, que inclusive passaram a contar com uma comissionada indígena, a dra. Maíra Pankararu [primeira indígena a compor a Comissão de Anistia]. Essa evolução da interpretação sobre as formas possíveis de concessão de anistia política é um passo que precisava ser dado já há muito tempo, desde antes do primeiro requerimento de anistia coletiva, apresentado pelo MPF em 2015, no caso Krenak. Isso só se tornou possível pelo envolvimento da presidenta da Comissão de Anistia, professora Eneá de Stutz e Almeida, e dos demais comissionados.
É claro que a abertura para a alteração do regimento interno da Comissão de Anistia é uma decorrência do novo ambiente político que vivemos, embora seja um ambiente que carregue, como se pode observar, a marca da crescente complexidade brasileira e do mundo atual, o que por vezes carrega contradições que trazem alguma perplexidade.
O que motivou o Ministério Público Federal a pedir a anistia ao povo Krenak à Comissão de Anistia no contexto de 2015? Foi após o relatório da Comissão Nacional da Verdade? Gostaria que o senhor contasse sobre o histórico desse processo.
O relatório final dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade é de 10 de dezembro de 2014. A essa altura, o fato é que já tramitava um inquérito civil instaurado no MPF aqui em Belo Horizonte, a partir da representação de um cidadão, tratando das graves violações que foram cometidas pela ditadura militar contra o povo indígena Krenak. Já havíamos, inclusive, ouvido vários indígenas na Terra Indígena Krenak e na Terra Indígena Maxakali, seja com relação ao Reformatório Krenak e ao deslocamento forçado para a fazenda Guarani, seja no que diz respeito à Guarda Rural Indígena.
O relatório final dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade constituiu um elemento a mais no conjunto das provas apresentadas pelo MPF, seja no requerimento de anistia coletiva [de março de 2015], seja na Ação Civil Pública, ajuizada em dezembro de 2015, contra a União Federal, o estado de Minas Gerais, a Funai [atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas], a Ruralminas [fundação estadual que depois veio a ser extinta] e contra o capitão Manoel dos Santos Pinheiro, em que postulamos medidas mais amplas de reparação, de desvendamento da verdade, preservação da memória e implementação de medidas de não repetição.
Esse reforço trazido pela menção ao caso Krenak no relatório final dos trabalhos da CNV foi utilizado também na denúncia criminal oferecida pelo MPF, em outubro de 2019, contra o capitão Pinheiro, pelo crime de genocídio.
Mas, nessas três perspectivas – administrativa, cível e criminal –, o conjunto probatório das graves violações cometidas contra o povo Krenak é muito amplo, mesmo que a denúncia criminal, após recebida pela Justiça Federal em Governador Valadares, depois tenha sido trancada, por questões de interpretação jurídica, pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
O senhor poderia resumir quem foi o capitão Pinheiro, falecido em setembro do ano passado, e por que ele foi denunciado por crime de genocídio?
Em suma, ele foi denunciado por genocídio porque, ao viabilizar a instalação do presídio Krenak, o funcionamento da Guarda Rural Indígena (Grin) e o deslocamento forçado para a fazenda Guarani, o capitão Pinheiro submeteu o grupo étnico Krenak a condições de existência capazes de ocasionar sua destruição física total ou parcial, além de ter ensejado um processo de profunda traumatização psicossocial coletiva dos Krenak. Ele foi a pessoa que encarnou os atos de Estado que resultaram nos episódios emblemáticos que sintetizaram essas graves violações.
O capitão Pinheiro ocupava a dupla posição de chefe da Ajudância Minas-Bahia [uma instância regional da Funai que abrangia o território Krenak naquela época] e de comandante-geral da Grin, porque uma portaria da presidência da Funai, datada de 1969, estabelecia que o comando-geral da Grin seria exercido pelo chefe da Ajudância Minas-Bahia. Quem tinha sido nomeado chefe dessa instância regional da Funai? O capitão Manuel dos Santos Pinheiro.
Em 2015, eu estive com ele para ouvi-lo em Congonhas do Campo (MG), município onde ele morava, quando eu estava instruindo o inquérito civil que resultou na Ação Civil Pública, mas ele fez uso do direito de permanecer em silêncio e não respondeu a nenhuma pergunta. Quando ele me viu assinando o termo de declarações – canhoto que sou –, ele falou: “Ah, o senhor é esquerdista”. Foi a única coisa que disse.
Mas, com a morte do capitão Pinheiro, o processo criminal contra ele foi extinto, certo?
Sim. Já na esfera civil, na Ação Civil Pública, pedimos que fosse declarada a relação jurídica que ele, Manuel dos Santos Pinheiro, tinha com a União, a Funai e o estado de Minas Gerais, e essa declaração – que foi feita por sentença – traz ínsita a responsabilidade dele por essas graves violações de direitos dos povos indígenas. Isso tem um significado importante, na medida em que o desvendamento da verdade e a preservação da memória constituem um dos eixos basilares da justiça de transição, para que possamos – quem sabe um dia – superar no país esse passado de autoritarismo.
Quais outras medidas de reparação previstas em decisões judiciais no âmbito da Ação Civil Pública já foram cumpridas?
A União reuniu e sistematizou toda a documentação relativa às graves violações aos direitos humanos dos povos indígenas, que dizem respeito à instalação do Reformatório Krenak, à transferência forçada para a fazenda Guarani e ao funcionamento da Guarda Rural Indígena, disponibilizando essa documentação na internet. A União apresentou nos autos uma nota informativa sobre o cumprimento desse ponto da sentença.
Como estão as negociações com o governo federal para o cumprimento das outras medidas de reparação?
A Ação Civil Pública foi julgada em 2021 [os réus da ação foram condenados pela juíza federal do caso], mas a Funai conseguiu junto ao Tribunal um efeito suspensivo em sua apelação. Um grande anseio dos Krenak – porque o território é verdadeiramente essencial para os povos indígenas –, por exemplo, deferido pela juíza federal do caso e que se encontra suspenso por causa da decisão favorável ao efeito suspensivo pedido pela Funai, é a concretização da demarcação do território de Sete Salões (MG), que tem inclusive um valor espiritual para os Krenak.
No ano passado, três indígenas Krenak e eu nos reunimos com a presidenta da Funai, Joênia Wapichana, para falar justamente sobre a necessidade de destravar esse processo e de levar adiante a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação do território. Nós tivemos essa reunião no sentido de sensibilizá-la da importância da implementação desses pontos da sentença. Ela nos ouviu, disse que estudaria o caso, mas o fato é que ainda permanece vigente o efeito suspensivo que a Funai obteve junto ao Tribunal.
O senhor também foi um dos procuradores a atuar no caso envolvendo o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana, mais uma violência contra o povo Krenak. O senhor pode resumir o impacto desse desastre para os Krenak?
Não atuo mais no processo de reparação desse desastre causado pela Vale, pela BHP Billiton e pela Samarco, de modo que vou me limitar ao período em que atuei, e que incluiu o do ajuizamento, em março de 2016, da Ação Civil Pública de reparação, que se tornou conhecida como a ACP de R$ 155 bi – valor da causa à época –, formulada a várias mãos pelo grupo que então atuava no caso. Um dos pontos da ação era justamente a reparação aos povos indígenas, entre eles o povo indígena Krenak.
É possível traçar alguns paralelos materiais. Por exemplo, de 1972 a 1980, por causa do deslocamento forçado para a fazenda Guarani, os Krenak ficaram impedidos de realizar rituais culturais junto ao Watu – que é a forma que eles chamam o rio Doce –, uma entidade sagrada para eles. Em novembro de 2015, com o desastre do rompimento da barragem do Fundão, o rio foi morto pelas mineradoras e isso teve também o efeito de impedir essa convivência do povo Krenak com o seu rio sagrado e a realização de rituais às suas margens.
Há outras aproximações materiais possíveis. Quando os Krenak foram forçados a se deslocar para a fazenda Guarani, fazendeiros da região do médio rio Doce se apossaram de suas terras e devastaram seu território tradicional. Já em 2015, com o desastre da Vale, da BHP e da Samarco, uma nova devastação ambiental veio com os rejeitos da mineração. Então, em ambos os casos, o povo Krenak sentiu a devastação ambiental e a impossibilidade de conviver com o seu Watu.
Embora os contextos sejam diferentes, o regime militar de 1964-1985 – que também era empresarial, já que apoiado por macroempresas da época – causou ao povo Krenak feridas profundas, que nem haviam cicatrizado, quando foram reabertas pela lama da mineração das empresas Vale, BHP Billiton e Samarco.
Edição: Ed Wanderley