Eu quero qualquer coisa verdadeira
Um amor, uma saudade,
Uma lágrima, um amigo
Ai, a solidão vai acabar comigo .
Dolores Duran
Por Alcir Santos, compartilhado da Revista Nova Família
Inicio suscitando questão que não sei responder. Como explicar, ou traduzir, esse sentimento que oprime, angustia, deprime, mas, noutro extremo, pode libertar e conduzir à euforia?
Difícil e complicado. Por isso, limito-me a divagar.
Solidão não é, necessariamente, estar sozinho. Comumente, pessoas se encontram sozinhas, por força de circunstâncias ou por escolha própria, e não estão solitárias. Daí a expressão inglesa solitude, traduzida, grosso modo, como o prazer de estar consigo mesmo, com seus pensamentos, até como forma de se organizar emocionalmente.
O fato de estar cercado de pessoas não inibe a solidão. Porém, há uma espécie particularmente cruel de solidão, talvez a pior de todas, a “solidão a dois”, situação em que as pessoas já não têm nada que dizer umas às outras, restando-lhes a agonia de estar juntos mas sem qualquer interação, em mundos diversos.
Gregário por excelência, o homem, nos extremos da vida, está só. Nasce e morre irremediavelmente sozinho.
O sofrimento de sair da escuridão e do calor aconchegante e entrar no mundo exterior, agredido pelo frio e pela luz que fere a retina equivale, creio, à terrível solidão de quem se finda no ambiente asséptico e impessoal de uma UTI. Entretanto, para viver e fazer a travessia, é preciso estar em grupo. Impossível viver sozinho.
Desde suas origens, há dezenas de milhares de anos, o homem precisou juntar-se a outros para suportar – e superar – as intempéries e agressões externas. Em grupos, as possibilidades de sobrevivência eram infinitamente maiores. Assim é que conseguiu evoluir e chegar ao estágio atual.
Tudo começou quando aprendeu a juntar corpos para produzir calor, e forças para converter em alimento os predadores. Daí em diante buscou não ficar só. Nem sempre consegue.
No alvorecer deste século, especialistas afirmaram que a depressão tinha sido a doença do século XX e que a solidão seria a do século XXI. Causaram perplexidade.
Como é possível falar de solidão numa época em que, como em nenhuma outra, as pessoas estão tão juntas, tão próximas e acessíveis? Basta acionar algumas teclas. A proximidade é tanta que criaram o rótulo “mundo globalizado”, síntese de uma época em que todos partilham da vida de todos, a todo tempo.
Teoricamente, não há que se falar em solidão no mundo hodierno. Ledo engano! A vida real é diferente.
Neste momento, milhões de pessoas estão vivendo as agruras da solidão, a angústia de não ter com quem se comunicar, em quem se apoiar. Aí o brutal paradoxo de um tempo em que a comunicação é a tônica e as pessoas se evitam, distanciam-se, sequer se cumprimentam. Pobre de quem ousar pedir que lhe ouçam…
Sem mais o que dizer, permito-me derivar. A questão é tão palpitante e atual que #GabrielGarciaMárquez erigiu a sua obra em torno de um único tema: a solidão. Talvez seja o escritor contemporâneo que mais se debruçou sobre o tema. E não me refiro ao título do seu livro mais conhecido. Não. Basta ler/reler/folhear/sopesar qualquer dos seus títulos e, inapelavelmente, vai-se deparar com a solidão.
Sem esforço de memória, listo alguns títulos. Em Ninguém Escreve ao Coronel, tem-se a solidão do abandono, do esquecimento, de permeio com a esperança que se renova a cada ida do personagem principal ao porto. Notícias de um Seqüestro nos faz partilhar a solidão do desespero das duas seqüestradas, sem notícias e sem perspectivas, aferrando-se a uma réstia de esperança. O Outono do Patriarca é um tratado sobre a solidão do poder, de quem pode tudo e, na verdade, já não consegue discernir as coisas nem confiar nos áulicos, a ponto de misturar fatos, confundir pessoas e já não ter certeza de quem é. O General em Seu Labirinto é terrível. Acompanha a dolorosa decadência de Bolívar, o homem que doou a vida ao sonho de uma América única e acabou vencido, abandonado e martirizado pelas lembranças. Uma desconfortável viagem ao mundo da solidão.
Alguém pode discordar. Em Amor nos Tempos de Cólera, a magistral elegia ao amor outonal, não sobra espaço para a solidão à primeira vista. Engano. Como qualificar a agonia de anos e anos de espera angustiante, sem ter com quem dividir sonhos e esperanças, lutando e abrindo caminhos, tudo com o objetivo de enxotar a solidão e, afinal, alcançar a companhia arduamente buscada? O final é antológico, das mais belas páginas da literatura mundial. Entretanto, não nos esqueçamos da sofrida caminhada! Ah, e que dizer do impacto causado, no primeiro encontro, pela visão dos corpos nus, flácidos, marcados pelo tempo? Ali, a solidão se faz presente de forma brutal, olhares brilhantes repentinamente se cobrem das sombras da prolongada idealização. Onde foram parar os corpos imaginados e desejados?! Só quando se recompõem e os dois se fazem um é que a solidão se afasta.
Entretanto – apenas para argumentar –, na decisão de um dos personagens, que decreta a quarentena do “estado de cólera”, deixando um navio a subir e descer o rio sem aportar em porto algum, não há, também, um toque de solidão? Neste caso, a solidão dos que, maltratados pelo tempo e pelas vicissitudes, podem, enfim, estar a sós, juntos, porém separados do mundo, e satisfazer desejos, anseios e sentimentos duramente represados?
A solidão é fera, a solidão devora.
É amiga das horas, prima irmã do tempo,
E faz nossos relógios caminharem lentos,
Causando um descompasso no meu coração.
Alceu Valença
Alcir Santos é aposentado e leitor compulsivo. Coisa ele diz: “ex um bocado de coisa”, de office-boy, bancário, professor de História e Direito Civil e Prática Forente a juiz. Colunista da Revista Nova Família