E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva ao prazer do livro e aborda o descaso nem sempre discreto das autoridades que deveriam fomentar a leitura.
Deveriam, pelo menos, levar em consideração Franz Kafka quando diz: “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”.
Deveriam levar em consideração Jorge Luis Borges quando afirma: “Há aqueles que não podem imaginar o mundo sem pássaros, há aqueles que não podem imaginar o mundo sem água; ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.
Ficaria aqui me lamentando muito sobre o descaso com a literatura, mas vamos ao César, que vai falar do amor do primeiro livro, amor que não esquece e de um determinado concurso que participou. Ganhou ou não ganhou? Sem spoiler, leia.
Beija-Flor, 9 de junho de 2025.
Meu caro editor Washington, eu escrevi o texto “Do amor pelo primeiro livro a gente não se esquece” para participar de um concurso literário promovido pela Prefeitura do Rio, na condição de profissional da Educação. Poucos da minha escola sabiam do concurso. Eu mesmo encontrei o anúncio do certame, por acaso, estendido sobre a mesa da Sala dos Professores. Talvez não era para ele nem estar ali. Talvez fosse para eu não estar nem aí para ele.
Era como se o concurso não fosse importante para o cotidiano da escola. Não é raro ocorrer isso na Prefeitura. Aquilo que é mais importante para você, aquilo que realmente conta, aquilo que pode tornar alguém conhecido para além das atribuições da escola, pode parecer um mero capricho aos olhos dos outros.
Foi bom eu não ter vencido. Eu iria escrever uma very angry letter narrando os bastidores do concurso, a indiferença dos meus superiores, e como o fato de eu ter vencido não muda a situação da leitura no país: continua-se a ler pouco e mal.
Eu sou uma exceção à regra e me sinto bastante desprestigiado. Cá entre nós, tenho a impressão de que eles lá da Prefeitura não tenham sequer lido meu texto, quanto mais ter entendido alguns pormenores. A indiferença foi tanta que eu não recebi nenhuma devolutiva, nenhuma mensagem, nada recebi a não ser o silêncio. Minha very angry letter ficou presa na garganta.
É sob tal perspectiva “entalada” que vejo o município do Rio de Janeiro, a cidade da leitura de 2025, a cidade da Bienal. O secretário de Educação (Ferreirinha) anunciou como se fosse bilhete premiado de loteria cem reais de voucher por funcionário a ser gasto na Bienal. Acho que esse pessoal não acompanha direito o preço dos livros. Conto do vigário. Em casa de Ferreirinha o espeto é no professor.
Nesse mundo de especialistas matérias como literatura, filosofia, artes, línguas são quase consideradas sub-matérias. A não ser que se estude em uma boa escola pública, mas federal, elas são supérfluas. Os alunos podem ou não prestar atenção nelas.
Enfim, se pareço um tanto amargurado, mais do que de costume, é porque não gosto do rumo dos acontecimentos. Mas deixemos de lado este baixo astral, de cada experiência se aprende uma lição.
Ah, antes que eu me esqueça, meu primeiro livro, não esqueço, é o Chapeuzinho Amarelo, obra infantil escrita pelo Chico Buarque em 1970 e ilustrada pelo Ziraldo em 1979.
Vamos ao texto?
Do amor pelo primeiro livro a gente não se esquece
Eu já lia frases e enunciados em sala de aula. Só que ainda não sabia o que um livro era capaz de fazer com a gente até aquele momento. Até aquele momento. Sabe o o que eu senti? Bem, eu só sei que não ouvi nem as instruções da professora nem a agitação dos meus amigos; não ouvi o arrulhar do ventilador nem o zunzunzum do ar-condicionado nem o ranger das cadeiras. Eu encontrei certa paz interior, sabe? A história me atraiu, me levou para dentro de um lugar muito curioso onde eu era mais eu. E um mundo novo se descortinou.
Daquele dia em diante, sempre que possível eu arranjava um jeito de ficar mais perto dos meus amigos de letras e pontos e páginas. Sem fazer rodeios, logo me aproximei do pessoal da Sala de Leitura, que me deu um monte de sugestões de livros. Eu fui lendo e lendo e lendo. Lia tudo duas, três vezes. E não via a hora de encarar alguns de capa dura que se enfileiravam garbosamente nas estantes. Quando estariam à altura dos meus olhos?
O pessoal lá de casa estranhou um pouco, especialmente quando eu comecei a pedir livros de presente e a cogitar estantes organizadas por ordem alfabética ou de predileção. Afinal uma criança da minha idade não deveria ser assim tão íntima de livros. Alguém preferir um livro nas mãos à tela de um celular, como assim? Ué, mas o quê que tem? Livros não me intimidavam.
Não me sentia diferente de ninguém, mas confesso que foi um alívio saber que eu não era a única pessoa no mundo que curtia livros. Com o tempo, a gente acaba topando com um monte de gente que tem o livro não como um hobby, mas como uma forma de encarar a vida.
Sem livros não dá, foi mais ou menos o que o meu avô Caetano me disse. É capital saber ler as coisas bem, mesmo as aparentemente mais difíceis. Coisas que têm muitos significados nos auxiliam a alargar nossos horizontes, a estabelecer o que é verdadeiro e o que é falso, o que é para esperar mais um pouco e o que é para ter sido feito ontem.
Falta quanto para 2025? Eu não sei quanto a você, mas eu estou em polvorosa, à espera de habitar uma cidade que será a capital do livro. Capital, renda per capita, capital intelectual, captação, capitanear, o que mais? Meu Deus, vai ser um deslumbramento, uma vertigem? Não sei. Quem sabe?
Enquanto o grande dia não vem, contento-me com a impressão de abrir um livro sempre que puxo as cortinas do quarto de manhã. A combinação de azul e rosa daqui parece com um que pesquei por acaso no Cantinho da Leitura, um de capa colorida, uma beleza.
Do amor pelo primeiro livro a gente não se esquece.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.