Por Vitor Nuzzi, Rede Brasil Atual –
A Panair dominou a navegação aérea brasileira até 1965, quando teve a licença cassada pelo primeiro governo militar, por inspirações duvidosas
Nos anos 1960, a Panair era uma empresa consolidada, forte no mercado doméstico e internacional. Tinha seus problemas financeiros, como qualquer companhia aérea, mas nada que justificasse um despacho presidencial que, do dia para a noite, pôs a Panair no chão. Em 10 de fevereiro de 1965, o presidente Castello Branco, o primeiro do ciclo militar que perduraria mais 20 anos, simplesmente determinou a suspensão “a título precário” de todas as linhas nacionais e internacionais concedidas à empresa, que foram transferidas para a Varig.
O tempo demonstraria que o precário seria definitivo. Todas as tentativas para retomar o controle da companhia foram inúteis, muitas vezes com comportamentos pouco comuns no Judiciário. Representantes da companhia não têm dúvida de que se tratou de um caso de perseguição. Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade destacou o caso Panair como “exemplar”, no sentido de perseguição a empresários que “não compactuaram com a conspiração e o golpe, defenderam a Constituição e foram perseguidos e punidos pelo regime ditatorial”.
FOTOS: ACERVO CORREIO DA MANHÃ/ARQUIVO NACIONAL
Violência
Autor do livro Pouso Forçado – que acaba de ser relançado, dez anos depois da primeira edição –, o jornalista Daniel Leb Sasaki considera o episódio da Panair “o maior e mais emblemático” exemplo de violência econômica e jurídica. “A Panair do Brasil era uma empresa nacional de grande porte. Funcionava em quatro continentes e possuía um patrimônio material e técnico que nenhuma concorrente brasileira jamais acumulou. Era tão importante para o funcionamento da aviação, comercial e civil, que os militares chegaram ao ponto de criar leis específicas para desapropriar parcelas inteiras do ativo e para garantir que a companhia ficasse no chão para sempre, mesmo após pagar todos os seus credores”, afirma, lembrando que parte do ativo ainda existe. Caso da oficina de revisão de motores Celma (Companhia Eletromecânica), em Petrópolis (RJ), desnacionalizada em 1991 e hoje pertencente à GE. Pouco tempo depois do anúncio da suspensão das concessões, a Celma foi ocupada por soldados.
O motivo alegado para cassar as suspensões foi uma suposta dificuldade financeira da Panair. Havia acusações de má gestão, que apontavam para um quadro sem recuperação. Daniel Sasaki contesta. O livro traz em detalhes as arbitrariedades cometidas na Justiça, desde o primeiro momento, quando a Panair tentou pedir concordata e não conseguiu, passando por um decreto-lei da ditadura feito justamente para impedir o levantamento da falência da Panair, que não tinha mais dívidas.
“Nenhuma acusação levantada por civis ou militares contra os acionistas, diretores e a própria Panair se comprovou”, diz o jornalista. “Ao longo do processo, os réus provaram sua inocência em sentenças finais e irrecorridas – em plena Justiça da ditadura. Conseguiram provar também que documentos e informações falsos foram utilizados para subsidiar as denúncias, com o objetivo definido de desmoralizar a companhia e seus representantes perante o mercado e a opinião pública. Não há dúvida, no Judiciário, de que houve ali distorções graves. Note que em 1978, 13 anos após o fechamento da empresa, a própria assessoria jurídica da Aeronáutica recomendou o arquivamento dos processos criminais, por basearem-se em ‘vagas alegações’ versus a vastidão de esclarecimentos técnicos apresentados pela defesa. Assim foi feito.”
Ataque
A Panair tinha dois acionistas majoritários, Celso Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen. O primeiro, dono da Ajax, maior seguradora da América Latina, e amigo íntimo do ex-presidente Juscelino Kubitschek, provável candidato às eleições presidenciais de 1965, que não aconteceram – os brasileiros só voltariam a escolher um presidente em 1989. Simonsen tinha participação em mais de 30 empresas. Era dono de uma exportadora de café (Comal), carro-chefe do grupo Simonsen, uma das maiores multinacionais brasileiras, com subsidiárias operando em 53 países, conforme anota Sasaki. Também foi acionista da TV Excelsior e criador do Sirva-se, o primeiro supermercado brasileiro.
“É importante destacar que Mario Wallace Simonsen já estava sob ataque midiático alimentado por inimigos políticos e concorrentes poderosos desde 1963, portanto, antes mesmo do golpe”, ressalta Daniel. “Os testemunhos deixados pelos seus advogados em uma série de documentos enviados ao antigo Tribunal Federal de Recursos apontam que esses adversários, daqui e lá de fora, aproveitaram-se da tomada de poder pelos militares e da patologia do Judiciário para destruí-lo, associando-o, principalmente, ao governo deposto, de João Goulart. Conseguiram relativamente rápido.” Uma CPI com vários documentos falsos ajudou a derrubar o empresário, que teve todos os bens sequestrados apenas um mês depois do fechamento da companhia. Simonsen teve um colapso cardíaco e morreu em março de 1965, na França, onde morava, dois meses depois da suspensão das linhas de voo da Panair.
Outro fato que pôs Simonsen na mira foi o auxílio para o então vice-presidente João Goulart retornar ao Brasil em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. “Isso foi muito explorado contra ele”, diz Daniel. “De fato, Simonsen se colocou a favor da legalidade. Na viagem de volta da China, Jango foi hospedado em Paris por Max Rechulsky, diretor do Grupo Simonsen na Europa, que também ofereceu a estrutura de comunicações da Wasim (subsidiária do setor de café) para que o presidente pudesse se comunicar com o Brasil. Depois, Rechulsky acionou diversas empresas áereas para facilitar a viagem de retorno – que foi feita via Estados Unidos, por companhias estrangeiras, e não em rota direta, da Panair.”
A Varig acabou sendo a única beneficiada pelo fechamento da Panair, constata Daniel. A empresa ficou com as linhas mais rentáveis, as da Europa, com os aviões de maior porte, hangares no Galeão e parte das agências instaladas no exterior. O fatiamento da Panair e a transferência de bens da companhia é um dos vários trechos que chamam a atenção no livro. No caso da Varig, o representante da massa falida agradeceu, nos autos do processo, à diretoria da empresa pelas acomodações em que ficou na Europa e até pela consultoria jurídica prestada pela interessada no patrimônio do rival. Quarenta anos depois, a Varig quebraria.
Perdas
Para o autor, o Brasil perdeu, à medida que o Estado – “cujos agentes fabricaram dados para acusar a Panair de drenar recursos públicos” – teve de gastar mais por causa da falência que impôs à companhia. Também teve de assumir encargos previdenciários, pagamento de salários e custos com investimentos e manutenção. “A União abriu, ainda, as portas para que a empresa entrasse com ações judiciais, exigindo o pagamento de indenizações espetaculares: por perdas e danos, pela expropriação da Celma e das Comunicações (outra área da Panair) a preços irrisórios, pela ocupação irregular de patrimônio em aeroportos e instalações, entre outras. Algumas já foram ganhas. Falta pagar. A conta é alta.”
Perderam, sobretudo, os 5 mil funcionários da Panair, que trabalhavam em uma companhia prestigiada e de uma hora para outra ficaram sem nada. Durante muito tempo, muitos deles fizeram campanhas pela reabertura da companhia e tiveram apoio popular. Ainda hoje, remanescentes se reúnem todos os anos para lembrar daqueles tempos.
Que ficaram marcados também na memória de dois garotos, Milton Nascimento e Fernando Brant, autores deSaudades dos Aviões da Panair, gravada nos anos 1970 por Elis Regina originalmente como Conversando no Bar, por receio da censura. “A gente estava com um grilo (em relação ao título)… Porque a gente não podia ter saudade de nada que fosse bom”, contou Milton no documentário Panair do Brasil, dirigido por Marco Altberg, de 2007.
No mesmo filme, Brant conta que foi relembrando “minhas viagens de pequeno” e pensando na realidade de todos os brasileiros, “que víamos em pleno voo, em plena maravilha, um projeto e uma empresa como a Panair ser desmontada”. “O Fernando mandou a letra para Nova York, eu aí li aquilo tudo, cantei, gravei e mandei para a Elis”, lembra Milton. Um verso embutia um pequeno e marcante protesto simbólico: “Descobri que minha arma é o que a memória guarda/Dos tempos da Panair”.