Documentário conta a história dos pescadores de Tramandaí com os botos: ‘É um fenômeno raríssimo’

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“A interação vai além da captura de peixe, tem uma afinidade, uma relação de sociabilidade entre humanos e golfinhos que é muito rara”, diz diretor

Por Luciano Velleda, compartilhado de Sul 21




na foto: Técnica de pescar com a ajuda dos botos é tradição na Barra de Tramandaí. Foto: Divulgação

A relação entre os pescadores artesanais da Barra de Tramandaí e os botos é o tema do documentário lançado nesta sexta-feira (17), na antiga colônia de férias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Tramandaí. Intitulado Pesca do Boto, a obra é conduzida por meio das narrativas de cinco pescadores, retratando a complexa relação entre eles e os golfinhos; uma colaboração que se estende através de gerações e dá origem a um fenômeno único no mundo.

Os botos entram no encontro do rio Tramandaí com o mar em busca de peixes e sua presença indica para os pescadores onde está o cardume. Quando o boto aparece na superfície d’água, os pescadores correm para jogar suas tarrafas perto de onde o mamífero está. Postados na margem da barra, com água pelos joelhos, os pescadores aproveitam que a movimentação do boto “empurra” os peixes na direção deles. É um jogo de ganha-ganha. Os botos pegam peixes e os pescadores também.

A técnica da pescaria baseada nessa curiosa interação não é tão simples como possa parecer. O pescador que não consegue entender exatamente o que o boto está indicando pode se atrapalhar ao jogar a tarrafa e ainda prejudicar o trabalho de quem conhece.

O filme tem como realizador e diretor o antropólogo Olavo Ramalho Marques, professor do campus do Litoral Norte da UFRGS desde 2015. Sua aproximação com a peculiar relação entre os pescadores e os botos aconteceu antes de ingressar na universidade, quando ele dava aula no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), no campus de Osório, e foi convidado em 2014 para participar do projeto Botos da Barra.

“Topei, achei incrível a proposta”, recorda. Naquele momento, colocou à disposição do projeto seu conhecimento na antropologia e, mais especificamente, na antropologia visual. “É um fenômeno, uma coisa fantástica que acontece no litoral norte, tão única e singular”, define Marques, sem medir as palavras para se referir a inusitada parceria entre seres humanos e botos.

Ele conta que, até então, nunca tinha tido interesse especial pela pesca, situação que mudou ao conhecer o projeto Botos da Barra e criar uma equipe para acompanhar e registrar o fenômeno. “A proposta, desde o início, foi para esse documentário falar a partir da perspectiva do pescador e trabalhando com uma maneira de abordagem que gosto muito, que são as narrativas etnográficas”, explica.

O documentário recém lançado tem como personagens principais os pescadores Alzemiro Lentz Pereira, Nilton Gonçalves Izidor, Airton Gomes da Rosa (in memoriam), Lauri Anselmo (Graxa) e Maurino Ramos Francisco.

Conhecer os pescadores, as situações e histórias de vida, ambientadas no cenário da Barra de Tramandaí e a relação com os botos, incluindo as dificuldades no contato com eles, constituiu o centro do documentário. O aspecto da relação com os golfinhos abrange também a proximidade com diferentes gerações dos mamíferos. 

O filme começou a ser gravado em 2016 e seguiu por 2017 e 2018. Em 2020, ficou pronta a primeira versão do documentário. Agora, após angariar mais recursos, o filme chegou a sua versão definitiva, com finalização e remasterização do áudio. O lançamento nesta sexta-feira (17) fez parte do projeto de extensão chamado UFRGS na Praia. 

“A ideia é que o maior número possível de pessoas assista e possa se encantar com a interação e o reconhecimento entre os pescadores tradicionais e os botos que habitam aquela paisagem e são cocriadores da paisagem de Tramandaí e Imbé”, projeta o professor da UFRGS e diretor do documentário.

Com o filme agora pronto e a versão definitiva lançada, Olavo Marques reflete ter visto “milhares” de vezes as cenas gravadas durante o processo de edição e montagem, e reconhece ainda se emocionar com a história de união e parceria entre os pescadores artesanais e os botos na Barra de Tramandaí. 

“É uma história linda da interação desses pescadores de tarrafa com os botos. É um fenômeno raríssimo, prolongado e de reconhecimento”, analisa. 

O antropólogo e diretor do documentário recorda com carinho da pergunta certa vez feita por um dos pescadores durante as filmagens: “Será que os botos reconhecem a gente?”. A questão foi logo debatida entre os personagens do filme e eles concluíram, com convicção, que sim, os botos reconhecem os pescadores da Barra de Tramandaí.  

“A interação vai além da captura de peixe, tem uma afinidade, uma relação de sociabilidade entre as espécies, humanos e os golfinhos, que é muito raro, muito rica de conhecimento, de acesso, de cuidado. Os pescadores estão ali para cuidar e muito preocupados com a presença dos botos e celebrando cada um dos botinhos que nascem, os filhotes que aparecem com as mães, que são nomeados, são reconhecidos e começam a ser ensinados pelas mães e pelos pescadores também a pescar e a perpetuar a atração. É uma interação fantástica”, conta, entusiasmado.

Após o lançamento oficial, a previsão é de que o documentário esteja disponível na internet nos próximos dias. A divulgação será feita pelo Instagram do projeto Botos da Barra.

Relação em risco

Marques diz que a relação entre botos e pescadores tem valor inestimável e defende que haja condições para que tal presença se perpetue. Embora o filme tenha sido produzido antes da polêmica obra da Corsan/Aegea que pretende levar esgoto de Xangri-lá para o rio Tramandaí, e portanto o tema não é abordado no filme, a situação tem sido motivo de grande preocupação entre os pescadores da região atualmente, que veem seu sustento ameaçado – assim como a própria presença dos botos.

“Hoje em dia, o tema do lançamento desse emissário no rio Tramandaí é uma preocupação central dos pescadores. Eles falam o tempo todo, com uma preocupação gigantesca do que vai acontecer, com a qualidade das águas que, afinal de contas, é o nosso maior patrimônio. Os pescadores estão preocupadíssimos e bastante indignados”, afirma Marques.

O diretor do documentário Pesca do Boto destaca que projetos como o da Corsan/Aegea, quando são noticiados para o público em geral, costumam ser em momentos em que a obra já está avançada, em estágio quase irreversível. 

“Eles estão muito contrariados com a situação e como ela se construiu, com os impactos que possivelmente vai causar em relação a pesca, a qualidade do pescado e das águas, incluindo os botos. Eles estão tentando se mobilizar para contornar essa situação”, afirma. 

A disputa judicial em torno da polêmica obra da Corsan/Aegea prossegue. A união entre pescadores e botos igualmente continua acontecendo na Barra de Tramandaí – até quando e em quais condições, não se sabe.

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