Por Sabrina Pirrho, compartilhado de O Dia –
O seu documentário se propõe a discutir o papel da imprensa brasileira no período entre 2013 e 2019. Por que não existem muitas obras sobre o assunto?
Porque os donos dos meios de comunicação proíbem qualquer notícia sobre concentração de mídia no país. Ou manipulam a narrativa para fazer parecer que tal governo, pessoa ou partido “quer intervir na liberdade de expressão”. De fato, esse é o primeiro filme que fala sobre a absurda concentração de mídia que existe no Brasil, considerada pela ONU como “a mais alta do mundo ocidental”. É emblemático – e preocupante – que o único filme sobre esse tema só tenha sido produzido no ano 2020, do século XXI. Isso foi possível graças à coragem do canal CINEBRASiLTV, que apoiou o projeto desde o início.
Os jornalistas parecem incomodados em discutir a profissão em público? O papel da imprensa é ou não é notícia de interesse da população?
Eu acho que sim. O generoso cobertor da liberdade de expressão faz com que muitos jornalistas no Brasil se sintam à vontade para difamar pessoas e empresas sem precisar dar satisfação a ninguém. Que dirá discutir a profissão em público. Mas vivemos na era da informação e é necessário discutir o papel que os jornalistas e meios de comunicação têm na sociedade. A Rede Globo, por exemplo, foi um dos pilares da ditadura militar e acabou sendo favorecida com concessões a torto e a direito. Hoje ela tem jornais, TVs, rádio, internet, revistas, produtora de vídeo, etc. E tudo na mesma região. Nos países desenvolvidos, isso é proibido. Uma empresa como o New York Times não pode ter um canal de TV em Nova Iorque, porque isso seria muito poder para uma empresa só. Alguns acadêmicos, entre eles Ignácio Ramonet, o lendário editor do Le Monde Diplomatique, afirmam que a imprensa já não representa mais o “quarto poder”: a mídia já é o “segundo poder”, atrás apenas do poder econômico. Por isso, acredito que o papel da imprensa é, sim, notícia de interesse da população. E hoje em dia mais do que em nenhum outro momento da história.
Onde o filme pode ser visto?
Nas plataformas NOW, Google Play, iTunes, Vivo, Microsoft, Looke e CINEBRASiLTV.
Com o trabalho finalizado, a quais conclusões você chegou?
Depois de passar 7 anos falando com pessoas como Noam Chomsky (considerado o mais importante filósofo vivo do mundo), Glenn Greenwald (prêmio Pulitzer e Oscar), Laura Capriglione (uma das melhores jornalistas do Brasil), Luis Nassif, Xico Sá, Tales Ab’Saber e outros do mesmo porte, cheguei à conclusão que boa parte da imprensa brasileira não se preocupa com o destino do país – que é a mentalidade dessa oligarquia extrativista, do 1% que detém quase 30% da renda nacional. É digno de nota uma reportagem do jornalista Jamil Chade, do dia 18 de outubro, mostrando que o Brasil vive “o maior retrocesso em liberdade de expressão do mundo”. Esse retrocesso foi causado pelos ataques dos últimos governos a jornalistas e a meios de comunicação, e também pela completa ausência de pluralidade de informação no país.
Você incluiu entre os seus entrevistados pensadores e jornalistas estrangeiros. Por qual razão?
O objetivo do filme é contribuir com o debate sobre o poder da imprensa no Brasil. Por isso, ele precisa conversar com todas as pessoas, não apenas com aquelas que já têm consciência do papel predominantemente criminoso dos grupos de mídia na história brasileira. Caso contrário, seria como pregar para convertidos. Por isso, era importante mostrar uma visão “de fora” sobre a mídia. A sociedade brasileira está extremamente polarizada, então a pessoa que vê o filme pode ouvir um dos jornalistas brasileiros e pensar: “Ah, mas esse aí é comunista”. Ou petista, ou lulista, ou qualquer outro “ista” que tenha sido criado para dividir a sociedade nesses últimos anos.
A imprensa brasileira, que deu sua contribuição para o processo de redemocratização do país, agiu diferente no processo de impeachment da presidente Dilma?
Eu trabalhei como jornalista por 20 anos no Brasil e na Europa. Fui correspondente internacional durante 10 anos. Hoje posso dizer que vivenciei duas grandes mentiras: a primeira foi a Guerra do Iraque. Uma “mentira de Estado” (norte-americano, no caso) sem parâmetro na história da humanidade. Provavelmente a maior mentira já contada. A outra grande mentira que vivenciei como jornalista foi o impeachment da Dilma e a prisão do Lula. A mentira contada pela mídia no Brasil foi tamanha que os meios de comunicação do exterior se deram conta e alguns, como o Le Monde, decidiram pedir desculpas a seus leitores por terem confiado nas notícias da imprensa brasileira. Nesse sentido, para mim está claro que o papel da imprensa no processo do impeachment da Dilma foi um crime lesa-pátria. Se algum dia o Brasil tiver o seu “Tribunal de Nuremberg” para julgar e punir todos os envolvidos nesse crime, os oligarcas da mídia deverão ser os primeiros a ser julgados.
Há má vontade editorial com o PT e Lula, seu líder?
No começo do filme, os entrevistados falam sobre como o jornalista deixou de ser o “herói da sociedade” e passou a ser o representante dos interesses dos poderosos. Alguns anos atrás, ele almoçava com sindicalistas; hoje, toma vinho com banqueiros. Esse movimento vem acontecendo em todo o mundo, mas no Brasil há um algo a mais: O setor midiático foi conquistado pelo neoliberalismo: 3 bancos controlam a massa falida da Editora Abril; a Folha de S. Paulo virou uma empresa de transações eletrônicas; a revista Piauí pertence a banqueiros; a família Marinho é a mais rica do Brasil, e por aí vai. Então é natural que as empresas de comunicação do 10º país mais desigual do planeta e último país da América a abolir a escravidão não tenham nenhuma simpatia por governos ditos de esquerda. Prova disso é que na única que vez em 500 anos que a esquerda governou o Brasil viu-se uma tempestade midiática sem precedentes. Quem não se lembra das horas de Dilma, Lula e PT no Jornal Nacional? Das reportagens sobre os pedalinhos dos netos do Lula que “teriam sido comprados com dinheiro de corrupção”? Do apartamento que o Lula visitou no Guarujá? Das pedaladas fiscais? Para saber se há “má vontade” com a esquerda, basta comparar a intensidade da cobertura da imprensa em relação ao atual governo com o furacão midiático que foi criado na época em que o PT governava. E não acho que seja só com o PT. Se o PSOL, por exemplo, chegar ao poder algum dia, o comportamento dessa mídia será idêntico. É inerente à cultura escravocrata berrar com movimentos sociais e falar mansinho com os próprios bandidos de estimação quando são pegos com a boca na botija.
Um dos compromissos do jornal O Dia é ampliar a pluralidade de pensamento para assim oferecer aos leitores um cardápio variado de ideias. A isenção jornalística no Brasil é algo raro ou abundante?
Eu acho que a isenção jornalística não existe em nenhuma parte. Todas as pessoas têm um viés; todas as empresas têm determinados interesses. A questão é: o quanto isso é transparente? O veículo de comunicação expressa suas opiniões só pelos editoriais? Ou há uma ingerência oculta na cobertura do dia-a-dia? Um direcionamento? Não é por acaso que o Brasil foi invadido por meios de comunicação de outros países: El País, BBC, The Intercept… isso sem falar nos blogueiros independentes e nas centenas de canais de mídia alternativa que estão surgindo. A desfaçatez da imprensa brasileira abriu mercado para empresas e pessoas que fazem algo próximo do jornalismo honesto.
Os grandes meios de comunicação têm sido criticados por não terem feito uma cobertura equilibrada dos acontecimentos – à direita e à esquerda – durante o processo de queda da presidente Dilma. No que fundamenta-se este princípio?
Da forma como vejo, o tratamento dado pela imprensa à esquerda e aos movimentos sociais ao longo dos anos envenenou a sociedade. Tanto é assim que o termo “petista” hoje tem sentido pejorativo, semelhante à palavra “judeu” na Alemanha dos anos 30. Acho que essa criminalização de um partido político – e de toda a política por extensão – gerou uma profunda cisão. Hoje o Brasil é um país dividido: discussões políticas em família, entre amigos e nas redes sociais. Não é necessário ser doutor em sociologia para saber disso. É o nosso dia-a-dia: ódio, discussões, divisão. Nesse contexto, tudo ficou polarizado. De um lado a mídia oligárquica e de outro grupos de mídia e jornalistas independentes que foram para o outro extremo. E aí o jornalismo de esgoto, para citar o Luis Nassif, começou a jorrar pelos dois lados. No final, como acontece nas guerras, a informação acabou sendo a primeira vítima. A segunda foi o Brasil, que do dia para noite deixou de ser o mais importante país em desenvolvimento do mundo. O nome do filme é “A nossa bandeira jamais será vermelha”, mas poderia ser também “A marcha da insensatez” ou “Lesa-pátria”.