Por José Geraldo Couto, publicado em IMS –
Em meio aos filmes de férias, entra em cartaz discretamente um esplêndido documentário, Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes. Bem recebido no festival de Berlim deste ano e premiado com menção honrosa no É Tudo Verdade, o filme é um mergulho num lugar incomum, a cidade de Toritama, de 40 mil habitantes, no agreste pernambucano.
Antes de sermos informados de que ali é a “capital do jeans”, responsável por quase um quinto da produção nacional do setor, somos surpreendidos por imagens desconcertantes: sob os acordes de um concerto de Bach para piano, glamorosas efígies publicitárias de moças e rapazes vestidos de jeans pairam sobre a paisagem árida do agreste.
São enormes outdoors com contornos humanos, filmados em contre-plongée de um carro em movimento, mas a sensação criada é de um desfile insólito, anunciando os paradoxos e contradições daquele lugar, que serão explorados com a paixão da curiosidade pelo cineasta. Aliás, antes mesmo dessas imagens, ainda sobre a tela preta, ouvimos a voz de Marcelo Gomes explicando que, quando menino, viajava àquela região com o pai, fiscal de tributos do governo. E em vários momentos ao longo do filme o diretor cotejará o que vê à sua frente com as lembranças que carrega.
O uso do tempo
Diante dessa situação, Estou me guardando… poderia ter seguido diferentes caminhos. Poderia ser uma investigação estritamente jornalístico-sociológica, informando dados estatísticos, explicando as relações sociais e econômicas. Poderia ser uma apologia do empreendedorismo, exaltando “gente que faz”. Poderia, por fim, ser um réquiem nostálgico por um sertão que não existe mais, feito de roçados, jegues e criação de bodes.
Marcelo Gomes, de certo modo, abraçou todas essas opções e, ao mesmo tempo, rejeitou todas elas, ou melhor, as transcendeu por meio da adoção de um eixo de grande potência criativa: o uso do tempo.
Quase todos os habitantes de Toritama dedicam-se, de um modo ou de outro, à produção de jeans, em fabriquetas de fundo de quintal, chamadas de “facções”, ou (geralmente os mais velhos) sentados na calçada, fazendo serviços de acabamento. Todos, invariavelmente, dizem com orgulho que são “donos do próprio tempo”, já que fazem seu horário e são pagos por produção. Só que, indagados pelo diretor, dizem trabalhar doze horas ou mais por dia. E como é esse trabalho? Como é a ocupação desse tempo do qual os toritamenses dizem ser senhores?
Apêndice da máquina
É aí que chegamos ao cerne do filme de Marcelo Gomes, uma sequência de imagens de gente trabalhando nas várias etapas do processo de produção: tecendo, cortando, tingindo, costurando, esfiapando, desbotando. O calor é opressivo e muitos trabalham de bermuda, sem camisa. Vemos mãos, braços, torsos, pernas, em movimentos repetitivos – numa ilustração didática do conceito de “homem como apêndice da máquina” brandido pelos críticos do capitalismo industrial e retratado em filmes como Tempos modernos, de Chaplin, e A nós, a liberdade, de René Clair.
Mas, se há didatismo no filme, ele vai além do libelo sociológico ao questionar a própria organização das imagens e sua relação com o som. Num momento inspirado, Marcelo Gomes diz, em sua locução, que o ruído incessante das máquinas o exaspera. Ele tira o som, mas diz que o movimento repetitivo das mãos continua a angustiá-lo, mesmo em silêncio. Insere então uma música (o concerto de Bach), notando que o ritmo das mãos parece seguir seus acordes. Em suma: as mesmas imagens, combinadas com bandas sonoras diferentes, assumem sentidos inteiramente distintos, produzem ideias e emoções inesperadas. Uma modesta aula de cinema.
Mas o interesse maior do cineasta, mais do que as estruturas e as ideias abstratas, parece se concentrar nos indivíduos, em sua experiência pessoal e intransferível. Destacam-se então algumas figuras, como o veterano criador de bodes Canário, o último que restou na cidade, e que conhece pelo nome suas dezenas de animais. Seu depoimento é um contraponto à febre do “ouro azul” que parece ter acometido seus conterrâneos: “Eles só pensam em ganhar dinheiro. Eu não, eu faço o que eu gosto”.
Em contato direto com a natureza e seus ritmos, Canário poderia ter sido usado pelo filme para uma defesa nostálgica de um modo de vida mais “autêntico” e pitoresco, como às vezes gostamos de imaginar o sertão. Mas Marcelo Gomes não se limita a essa visão redutora: sua dialética não é a do explicador, mas do artista curioso. É uma sucessão de antíteses sem síntese.
Pois, se há simpatia por Canário, há também pelo “pau para toda obra” Leo, rapaz de trinta anos que trabalha numa “facção”, mas não rejeita trabalho algum (na agricultura, na construção civil) para juntar dinheiro e viajar ao litoral no Carnaval, como quase toda a população da cidade. É uma figura pasoliniana, com sua vitalidade e sua candura subproletária.
Quando chega o Carnaval
Com Leo, Marcelo Gomes faz o pacto que, a meu ver, eleva o documentário a um nível poético superior. Ajuda financeiramente o rapaz a viajar no Carnaval com a família, encarregando-o, em troca, de filmar suas férias à beira-mar, enquanto ele, Gomes, filma Toritama, tornada uma cidade-fantasma nos feriados. O tempo, personagem central do filme, assume então outra densidade, algo que flui entre as ruas desertas e silenciosas de Toritama e os momentos de genuína felicidade de Leo ao mergulhar no mar, pescar um peixe, brincar com as crianças na praia, dançar ao som de uma música barata.
Faltou falar aqui de uma porção de coisas, como por exemplo, da feira dominical que agita a cidade e atrai gente de todo o país, ou dos sonhos modestos dos jovens toritamenses. Como todo grande documentário, Estou me guardando para quando o Carnaval chegar é feito de muitas camadas, de muitas entradas. No centro de tudo, a meu ver, o que ele ilumina é a relação, em condições histórico-sociais muito precisas, do corpo humano com o tempo e o espaço. Não, não é pouca coisa.