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O curta-metragem, dirigido por Renato Prata Biar, aborda a rotina exaustiva de entregadores de aplicativos de comida do Rio de Janeiro que pedalam para ganhar entre R$20,00 e R$50,00 por dia2 de fevereiro de 2020Ricardo Santos
Vidas Entregues é um documentário triste. Trabalhar como entregador de aplicativos de comida como iFood, Uber Eats e Rappi não significa liberdade de escolha, emprego sem patrão, ou empreendedorismo, mas sim mostra a precarização do trabalho, o desespero de uma massa desempregada de mais de 13 milhões de pessoas no Brasil. Não se trata de trabalho escravo, mas o nível de exploração é alarmante.
Por falta de regulamentação, o entregador arca com todos os ônus e as empresas dos aplicativos levam todos os bônus. A uberização do trabalho é um mercado bilionário, um fenômeno mundial, que se torna mais cruel em países socialmente injustos, como o nosso com sua reforma trabalhista que flexibiliza direitos.
A popularização do uso de aplicativos de comida no Brasil deu-se nos últimos cinco anos com a feroz concorrência entre empresas do setor. O iFood, de origem brasileira, fundado em 2011, dominava o mercado. Com a chegada de outros players como Uber Eats, Rappi e Glovo, a disputa por faturamento se acirrou às custas também dos ganhos cada vez menores dos entregadores de comida, motoboys e ciclistas.
O curta-metragem Vidas Entregues, dirigido por Renato Prata Biar, exibe, de forma nua e crua, depoimentos de alguns entregadores de comida na cidade do Rio de Janeiro. Todos são pessoas negras, homens e mulheres, e moradores da periferia. Acompanhamos relatos nada animadores sobre a rotina extenuante de pedalar o dia inteiro para ganhar entre R$20,00 e R$50,00 reais. Ou fazer apenas uma entrega no dia e ganhar sete reais. A renda desses trabalhadores oscila bastante e raramente chega a atingir ou a ultrapassar o valor de um salário mínimo ao final do mês.
O foco aqui são os entregadores que utilizam bicicletas. Um número que vem crescendo nas ruas, o que aumenta a oferta de mão de obra para esse serviço, diminuindo o número de entregas e, consequentemente, os rendimentos de cada um desses trabalhadores. Para quem está desempregado, é uma forma rápida de conseguir uma ocupação.
Depois de ter seu cadastro aprovado em um dos aplicativos, a pessoa pode alugar uma bicicleta em um dos totens do banco Itaú por R$20,00 por mês (mais a cobrança de eventuais multas caso não devolvam a bicicleta no prazo) e adquirir uma bolsa térmica com o logo do aplicativo de comida por um preço que varia de R$50 a R$80 reais, descontados nas entregas. Essa modalidade de serviço é a mais perversa para o trabalhador por ser a mais fragilizada, pela possibilidade maior de sofrer acidentes no trânsito, aumentando os casos de atendimento na rede pública de saúde.
O entregador só fatura quando está pedalando. Quando o entregador está parado, de folga ou doente, nem as empresas dos aplicativos nem o Estado lhe dão qualquer assistência ou benefício. Qualquer prejuízo para o cliente que pediu a comida ou para as empresas geralmente é descontado dos ganhos do entregador, como confirmam os relatos no documentário. Fora as penalizações aos entregadores que procuram se organizar e reivindicar remunerações mais justas.
Um elemento gravíssimo da uberização do trabalho é a relação entre empregado e empregador. Os aplicativos de entrega de comida no Brasil são algo novo, inclusive, para a legislação. O Ministério Público do Trabalho, em São Paulo, propôs, em 2019, uma ação civil contra o iFood por este não reconhecer o vínculo empregatício com os entregadores cadastrados, configurando, nas palavras dos procuradores, uma espécie de “servidão digital”. A empresa alegou que sua plataforma trata-se simplesmente de uma ferramenta para desburocratizar oportunidades de emprego.
Em janeiro de 2020, a Justiça do Trabalho, também em São Paulo, considerou a ação civil improcedente, não reconhecendo tal vínculo. Segundo a sentença, “Com a tecnologia e outros fatores sociais evoluímos para uma sociedade plural, multifacetada, com interesses muito variados e compostas por indivíduos com anseios igualmente variados”. Ou seja, o modelo de negócio como o iFood é uma inovação que não condiz com os critérios de subordinação tradicional devido a flexibilização da mão de obra.
No entender da juíza em questão, os entregadores detêm o meio de produção, e, conforme outro trecho da sentença, “possuí-lo o afasta da figura do empregado que presta seus serviços utilizando-se dos meios de produção do empregador e o aproxima mais da figura de autônomo”. As empresas do setor comemoraram essa decisão “histórica”. O Ministério Público do Trabalho entrará com recurso.
Os entregadores de comida por aplicativos vivem em um limbo social. O Estado e a Justiça jogam a responsabilidade da uberização para os próprios trabalhadores ao considerá-los autônomos. Já estes não sabem a quem recorrer em busca de seus direitos. Enquanto isso, empresas como o iFood se fingem de mortas, alegando que são meros intermediários na relação cliente-restaurante-entregador. O valor de mercado do grupo Movile, atual dono do iFood, é de quase 1 bilhão de dólares.
Quando os entregadores do documentário são questionados se largariam as bicicletas por um emprego de carteira assinada, eles respondem que sim, na hora, sem pensar duas vezes.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
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