DOI-CODI: Construindo História e Justiça de Transição no Brasil

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A informação que trago aqui é inédita e muito importante, por isso o Maastricht Blog on Transitional Justice merece ser o primeiro de todos a denunciá-la.

Por Deborah Neves (*) em Blog de Maastricht sobre Justiça de Transição, compartilhado do Blog da ABI




Na foto: Pátio do quartel da Polícia do Exército, onde existiu o DOI-Codi carioca (Foto: Kaoru/Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil)

Como já reportado pelo Prof. Flávio de Leão Bastos Pereira em janeiro de 2022, está em curso um processo judicial em São Paulo-Brasil que visa transformar as antigas instalações do DOI-CODI em memorial. Este memorial tem dois propósitos principais: prestar homenagem aos milhares de torturados e às dezenas assassinados por aquele órgão entre 1969 e 1983; promover uma melhor compreensão de como funcionava e se estruturava o maior e mais importante centro de repressão da ditadura civil-militar brasileira.

Criado em 1969 a partir de um consórcio formado entre o Governo do Estado de São Paulo, o Exército e grandes empresas, o DOI-CODI foi inicialmente denominado Operação Bandeirante. Foi instalado nas dependências do 2º Esquadrão Mecanizado de Reconhecimento do Exército, a apenas 1km de onde foi posteriormente transferido, na Rua Tutoia, 921, ocupando metade da 36ª Delegacia e um prédio anexo nos fundos do terreno. Compreendendo a importância deste local, além de sua indiscutível relevância histórica, mas também material e como elemento de prova documental do cometimento de crimes pelo Estado brasileiro, fez parte do meu trabalho na Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretário de Cultura do Estado de São Paulo desde 2010.

Naquele ano, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) foi intimado a torcer como patrimônio cultural tais edificações, considerando “sua importância histórica e relevante papel didático que a referida edificação tem por gerações de jovens brasileiros, que ignoram as atrocidades ali cometidas, o tombamento garantirá a preservação deste importante documento físico de nossa história recente” (SEIXAS apud NEVES, 2018). O pedido foi apresentado por Ivan Akselrud Seixas – preso no Doi-Codi em 1971 aos 16 anos junto com seu pai Joaquim Seixas, assassinado sob tortura dias depois. Cinco organizações de direitos humanos endossaram seu pedido, entre elas o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Condepe), órgão estadual vinculado à Secretaria de Justiça e Cidadania. Previsto na constituição estadual, o Condepe tem como principal objetivo “investigar as violações de direitos humanos no território do Estado de São Paulo” .

A partir dessa solicitação, os primeiros laudos técnicos elaborados entre setembro e dezembro de 2010 apontavam para a importância histórica do local, composto por quatro prédios, pátio e garagem coberta, com duas entradas possíveis: uma pela Rua Tutoia, que dá acesso à delegacia, e outra pela rua perpendicular – Tomás de Carvalhal. Não havia ali valores arquitetônicos marcantes ou notáveis ​​– eram edifícios produzidos em massa, provavelmente na década de 1960, devido às suas características estilísticas. Assim como esses prédios, havia muitas outras delegacias de polícia em todo o estado de São Paulo. Outros dois prédios estavam desafinados: um parecia uma residência e o outro tinha tijolos aparentes e uma garagem no térreo, cercada por um muro com duas guaritas, característica típica das instalações militares.

Em maio de 2012, o Condephaat decidiu proteger preliminarmente o prédio, garantindo a preservação do imóvel até o término dos estudos técnicos e decisão final do Conselho. Entre maio de 2012 e outubro de 2013, o aprofundamento dos estudos permitiu compreender a dinâmica de funcionamento do DOI-CODI em cada um dos edifícios. Também nos permitiu compreender como se deu a ocupação militar de prédios governamentais originalmente destinados ao uso civil. Com base na pesquisa, foram encontrados documentos muito importantes:

* Decreto 36.628/1960, que permitia a desapropriação de três terrenos para a construção da delegacia, e as respectivas atas do cartório. O Decreto confirma a tese da política de construção seriada, uma vez que várias outras desapropriações foram autorizadas em diversas cidades do Estado de São Paulo;

* Dois processos administrativos que tratam do acordo para a transferência de parte do terreno da Secretaria Estadual de Segurança Pública para o Segundo Comando do Exército;

* Fotografias aéreas de 1958, 1962, 1968, 1973 e 1977 que permitiram identificar a evolução da construção. Inicialmente, a delegacia e seu prédio anexo. Em 1960, edifícios em betão armado, com revestimento exterior em mosaico cerâmico, dois pisos, janelas longitudinais e amplas. Entre 1968 e 1973, a residência comum, com laterais simétricas e cobertura cerâmica, com fachada protegida apenas por pintura, e um edifício de alvenaria construído em estruturas acima do nível do solo. Essas construções, portanto, foram construídas pelo Exército e, portanto, eram diferentes das primeiras.

Com base nesses documentos, foram realizadas inspeções com pessoas que foram sequestradas pelo DOI-CODI entre 1969 e 1975 e que relataram onde foram detidas, onde foram interrogadas e torturadas, por onde entraram nos prédios e o que conseguiram reconhecer esta visita. No Brasil, foi a primeira vez que uma agência de preservação do patrimônio e ex-presos políticos trabalharam em parceria para o reconhecimento e preservação de uma edificação ligada às forças de repressão governamental.

No entanto, não encontramos as plantas arquitetônicas originais para os edifícios. Os processos administrativos indicaram que o Exército não apresentou os planos das obras que realizou a partir de 1969, mas acreditamos que existam. Os prédios construídos para abrigar a delegacia em 1960 deveriam ter plantas, pois constavam do Plano de Ação do Governo do Estado, que previa a construção de centenas de equipamentos públicos. No entanto, eles não estavam localizados no momento do estudo, o que nos levou a criar uma planta alternativa simples ao edifício. Esse plano ajudou os ex-prisioneiros a identificar onde foram interrogados e torturados; e permitiu à equipe técnica da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH) escolher diferentes graus de preservação para as edificações,

Dez anos após o início dos estudos, a UPPH soube que o acervo da Secretaria de Obras Públicas, responsável pelo Plano de Ação, havia sido incorporado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo após ficar inacessível por pelo menos duas décadas. Em consulta com o Centro de Cartografia, solicitamos a busca do acervo e, finalmente, os planos foram localizados graças ao empenho dos funcionários do Arquivo envolvidos na busca, trazendo-nos alegria e a possibilidade de aprofundar pesquisas arqueológicas e arquitetônicas para apoiar a criação de o memorial.

Três aspectos iniciais desses documentos chamam a atenção:

Um, o prédio anexo foi originalmente projetado para ser uma unidade de treinamento e habitação, cujo caráter foi pervertido e transformado em local de interrogatório, tortura e assassinato;

Segundo, a existência de uma barbearia no primeiro andar confirma o depoimento de Ivan Seixas, que relatou que foi nessa sala que seu pai foi torturado na Cadeira do Dragão (espécie de cadeira elétrica), pois lembrou-se da pia instalada lá. A pia estava prevista na planta original;

Terceiro, o último aspecto resolve uma dúvida sobre por que apenas dois prédios foram construídos no início da década de 1960, deixando o terreno vazio. Com acesso ao projeto original, a delegacia e o anexo seriam usados ​​como uma espécie de centro de treinamento, contendo duas salas de aula, barbearia e 5 quartos com leitos. Na área onde o Exército construiu seu setor de inteligência e alojamentos, foi originalmente planejada a construção de um Tribunal.

Assim, naquele local onde milhares de pessoas foram torturadas e dezenas foram assassinadas, os princípios da Justiça pereceram, distorcendo seu propósito inicial. Conforme relatou aqui Flávio de Leão Bastos Pereira, foi somente em 2021 que a Justiça realmente preencheu aquele espaço, por ocasião da audiência de conciliação entre Estado e Ministério Público. Foi a primeira vez que a Justiça entrou no DOI-CODI, mas não foi a primeira vez que foi projetada para aquele espaço. A educação também terá espaço, não para formar a Polícia, mas para transformá-la.

Esses documentos originais ainda estão em análise e servirão de base para pesquisas arqueológicas com início previsto para julho de 2022 como parte de um projeto de criação e construção de um memorial, transformando o espaço em um lugar de memória e consciência. No entanto, já mostram a importância dos registros públicos e da pesquisa científica para o atendimento da justiça de transição, que caminha lentamente no Brasil.

(*) Deborah Neves é Ph.D. em História, especializado em património cultural e sítios de memórias difíceis. Historiadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico, Governo do Estado de São Paulo, Brasil

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