Dois gênios esquecidos da música clássica brasileira

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O primeiro aluno do Conservatório de Música do Rio enviado à Europa, um músico negro e abolicionista; e um compositor do interior do Maranhão que fez sucesso na Paris do século 20: conheça dois nomes esquecidos da música clássica nacional

Por Anne Silva, compartilhado de Fórum




foto: Retrato de Henrique Alves Mesquita em folhetim antigo. Créditos: Arquivos

Henrique Alves de Mesquita (1830 – 1906) foi um compositor talentoso e um dos músicos mais singulares da história da música erudita no Brasil. Filho de pais não casados, negro e nascido em uma casa humilde na Ladeira do Castelo, no Rio de Janeiro, ele enfrentou os obstáculos de uma sociedade escravocrata, no Brasil Império, para se tornar um dos maiores instrumentistas brasileiros, além de maestro e o primeiro aluno do Conservatório de Música do Rio de Janeiro a ser enviado à Europa para estudar, com os custos cobertos por uma bolsa recebida do Império.

Apesar de ser um instrumentalista e compositor pouco lembrado, a vida de Mesquita foi marcada por breve consagração pública, com seu reconhecimento pela corte de Dom Pedro II; pelo envolvimento engajado com o movimento abolicionista de sua época e por episódios polêmicos que contribuíram para seu apagamento posterior.

Ao contrário de contemporâneos como o compositor Carlos Gomes, cuja morte foi tratada como evento nacional, Mesquita faleceu pobre, em 1906, e sua morte praticamente não foi noticiada, mesmo tendo deixado mais de 200 composições, entre óperas, missas, hinos e peças populares (com temáticas abolicionistas).

Aos 17 anos, estreou nos palcos imperiais num concerto benefício organizado por músicos influentes de sua época, em que se destacou pelo talento; e, em 1855, ingressou no Conservatório de Música, onde venceu um concurso que lhe rendeu, além da cobiçada “medalha de ouro”, um prêmio ainda maior: uma pensão do Império para estudar música na Europa.

Lá, em Paris, foi aluno de François Bazin, mestre do gênero opéra-comique, que se tornava famoso à época, e logo impressionou ao enviar ao Brasil composições como a valsa D. Leopoldinae, homenagem à rainha, e o Te Deum dedicado ao imperador. Uma de suas missas recebeu, inclusive, elogio numa crônica atribuída a Machado de AssisDR. Semana, publicada entre 1869 e 1876. “A arte brasileira atual precisa de um Beethoven: Mesquita pode se^-lo“, teria escrito ele.

Em 1863, Mesquita foi preso em Paris sob a acusação de “ofensa à moral pública”. E, mesmo com o apoio da embaixada brasileira e a contratação de um dos maiores advogados da França, foi obrigado a cumprir três anos de pena. Apesar de a documentação do caso provavelmente ter sido perdida no incêndio do Palais de Justice, em 1871, alguns jornais brasileiros da época sugeriram que o caso teve motivação racial: a denúncia teria surgido após o envolvimento de Mesquita com uma jovem branca. O episódio manchou sua reputação na corte, e algumas fontes sugerem que Dom Pedro II jamais o tenha “perdoado” pelo incidente.

Mesmo assim, ao retornar ao Brasil em 1866, Mesquita retomou sua carreira e foi o regente de vários eventos de grande porte, como as exéquias da princesa Leopoldina (1871) e o funeral de Carlos Gomes (1896). Além de composições eruditas, Mesquita se destacou por obras populares: foi, por exemplo, o primeiro a usar (e a cunhar) o termo “tango brasileiro”, com a peça Olhos Matadores, que antecipou o músico Ernesto Nazareth na consolidação posterior do gênero.

Sua produção era ampla: ia da música sacra, como a Missa de Santa Cecília, de 1856, à sátira social, como na ópera Triunfo às Avessas (1871).

Cartaz de Une Nuit au Château, de Henrique Alves Mesquita.
Créditos: arquivos/divulgação

Em 1870, ele apresentou sua obra mais celebrada: Uma noite no Castelo, transposta para o francês como Une Nuit au Château, baseada no libreto de Paul de Kock e tocada no Teatro Lírico Francês do Rio. A crítica à peça foi praticamente unânime: o jornal A Reforma o classificou como “um dos mais engenhosos compositores nacionais”, e o cronista França Júnior escreveu que sua música “fala ao coração” e poderia ter sido escrita “por um compatriota de Boïeldieu”.

Mesquita lecionou no Instituto Nacional de Música e, comprometido com a causa abolicionista, compôs peças com influências africanas e afro-brasileiras. Algumas de suas obras, como A Pera de Satanás: Tango dos Pretos (1872) e O Tango dos Negros (1890), abordam diretamente a escravidão e a cultura afro. Além disso, a opereta Trunfo às Avessas foi a primeira na história do Brasil a ser encenada por um coro de pessoas negras, no Teatro Nacional.

Entre suas peças mais expressivas está o Hino ao Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, o centro fundado em 1882 por trabalhadores da Gazeta da Tarde. O hino foi composto por Mesquita especialmente para a causa, e era uma peça central nas atividades do clube abolicionista, que se dedicava à libertação e educação de escravizados.

Em 1888, ano da abolição da escravatura, Mesquita regeu seu próprio Te Deum para as celebrações de 7 de setembro.

Ele faleceu 18 anos depois, e o evento recebeu pouca atenção pública. À época, jornalista Artur Azevedo escreveu, em nota no caderno O Theatro do jornal A Notícia

Henrique de Mesquita morreu há dias septuagenário e paupérrimo. Era um esquecido. Há vinte e cinco anos a notícia do seu falecimento produziria sensação; agora, deu apenas lugar a alguns necrológios lacônicos, escritos por quem tem mais em que se ocupar.

Já os rapazes da minha geração não conheceram o Vagabundo, a ópera dele, cantada no Rio de Janeiro em português e depois em italiano; deliciaram-se, porém, com outras composições do mestre, que, por serem ligeiras, não deixaram de popularizar o seu nome.

Quem aqui há da minha idade que não se lembre das Seiries brésiliennes, a célebre quadrilha que nos fez dançar, e do tango dos pretos e da marcha do elefante do Ali-Babá, e de tantas roamanças brasileiras, tão belas como as de Tosti? Muita gente se lembra ainda da ópera-cômica La nuit au chateau, cantada no Alcazar e depois, muito depois, na Phenix, cujas ruínas devem guardar os ecos das melodias da Princeza Flor de Maio, da Corôa de Calors Magno, do Triunfo às Avessas, da Loteria do Diabo, da Gata borralheira, e que sei eu!

Outro nome pouco lembrado da música brasileira é Elpídio de Brito Pereira (1872 – 1961), natural de Caxias, no Maranhão. O músico nordestino um dos poucos compositores brasileiros a conquistar reconhecimento na cena musical parisiense entre o fim do século 19 e o início do 20, mas também é um nome pouco lembrado da música.

Elpídio iniciou sua formação musical no interior do Maranhão, onde começou a aprender o violino e logo a compor polcas (gênero de origem boêmia/tcheca, que tem influência no choro brasileiro, com ritmo rápido em compasso binário e feito para dançar em pares), além de valsas e marchas, que eram em geral executadas por bandas para festas populares e celebrações religiosas regionais.

Descrito como um músico disciplinado e autodidata, ele foi aluno de mestres como Antônio Cariman e Antônio Coutinho, e, na juventude, já se destacava com obras como Recordação e Vicentina de Paulo.

Trecho de notícia de jornal sobre Elpídio Pereira.
Créditos: APEM Cultura – MA / divulgação

Em 1891, com apoio familiar e depois com financiamento do governo do Amazonas, viajou a Paris para aperfeiçoar seus estudos, onde aprenderia harmonia sob a tutela de Antoine Taudou, músico do Conservatório de Paris, e violino com Domenico Ferroni (embora não haja muitos registros sobre este último).

A formação francesa de Elpídio, aliada à sua tradição na música popular brasileira, fez dele o compositor uma obra diversificada, que mistura referências eruditas e populares.

Já durante sua segunda ida a Paris, entre 1898 e 1902, ele foi regente da importante orquestra Lamoureux, quando apresentou dois concertos compostos exclusivamente por obras suas. Mas o auge de sua carreira veio em 1923, com o balé Les pommes du voisin, apresentado no Théâtre de la Gaîté Lyrique: uma obra considerada humorada, com forte lirismo e marcada por elementos do cotidiano, recebeu repercussão do público parisiense, embora pouco reconhecimento nacional.

Outras composições de destaque incluem Une nuit à la belle étoileAbertura de TiradentesApós a vitóriaMarcha do CalvárioL’éternelle présence (com texto de André Dumas) e sua ópera inédita Calabar, um drama lírico que fala sobre a resistência luso-holandesa no Brasil colonial.

Apesar da forte influência francesa, Elpídio nunca rompeu com os temas nacionais na sua obra. Ele musicalizou a Canção do exílio, a obra-prima de Gonçalves Dias, e também homenageou figuras como Tiradentes e Saldanha da Gama nas suas composições.

Ao longo da vida, esteve sempre em trânsito entre Manaus, Belém, São Luís, a capital de seu estado de origem, Lisboa e Paris. Foi professor, crítico musical, compositor de hinos (inclusive o hino de Caxias, sua cidade natal, no interior do Maranhão) e regente de concertos cívicos e religiosos diversos. Quando retornou da França para o Brasil, trouxe consigo partituras e ideias de vanguarda que contribuíram com a criação de uma prática musical nova no norte e no nordeste, apesar de negligenciado pela crítica musical do eixo Rio-São Paulo, voltada ao nacionalismo e às obras mais ortodoxas de uma música descrita como ‘canônica’.

Estudiosos apontam que o apagamento de Elpídio da história da música clássica brasileira se deveu menos à qualidade de sua obra que à sua posição estética considerada “híbrida”, que não parecia se encaixar nem na composição “nacional” de Villa-Lobos nem nas correntes modernistas da época. Além disso, a música de Elpídio, forjada entre bandas do interior, igrejas coloniais e salões franceses, desafiava (e continua a desafiar) as categorias rígidas da historiografia musical, especialmente no século 20.

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