Dois meninos e um comandante que quer sangue

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Por José Rodrigues, Outras Palavras – 

“Quando olhei para os dois garotos, não consegui ver outra coisa diferente do que dois aniquilados. Eles já estavam mortos, só faltavam cair”

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Há lembranças que nos habitam como se fantasmas fossem. Pois, o presente insiste em atualizar o que gostaríamos que fosse apenas passado. Por isso, já superado. Eu não posso — e nem devo, ou quero — esquecer daquilo que em mim é ferimento, angústia, revolta, mas que no outro é a própria sentença de morte, em vida. “O comandante quer sangue”. A frase ouvida numa conversa entre um policial e um taxista, alguns anos atrás, no Rio de Janeiro, tem a sinistra potência de permanecer atual; como se, a cada novo ato de violência policial, cada novo “auto de resistência”, a mesma se atualizasse ferozmente. “O comandante não quer que prenda. Ele quer que mate”. O alvo da conversa eram dois meninos franzinos que circulavam próximos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) pedindo esmola e engraxando sapatos. Há sangue no chão.




Parafraseando João Cabral de Melo Neto, em “Morte e vida Severina”, está cada dia mais difícil defender só com palavras a vida. Ainda mais quando se trata de uma vida severina de jovens pobres, negros e moradores de periferias de grandes centros urbanos. Há uma geografia da matança e um padrão de extermínio que segue uma geografia e que se expande e se fortalece com a associação histórica entre pobreza e periculosidade.

Em recente relatório publicado pela Human Rights Watch, vemos que

O número de pessoas mortas pela polícia, incluindo por policiais fora de serviço, aumentou em quase 40% em 2014, chegando a mais de 3.000, de acordo com dados oficiais compilados pela organização não-governamental Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No Rio de Janeiro — estado com a maior taxa de mortes causadas pela polícia — 569 pessoas morreram em operações policiais entre janeiro e outubro de 2015, um aumento de 18 por cento em relação ao mesmo período de 2014.

Outras pesquisas e documentos, como “Você matou o meu filho” (Anistia Internacional, 2015), o “Anuário brasileiro de segurança pública” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015), “Os jovens do Brasil” (Mapa da violência, 2014), a “Global Study on Homicide” (ONU, 2013), apontam o mesmo cenário: há um aumento nas taxas de homicídios e suas principais vítimas são jovens, em sua maioria homens, negros, entre 15 a 29 anos, moradores de comunidades pobres. A principal forma da morte é por arma de fogo.

As pesquisas parecem não comover parcela da população que, alimentada por um jornalismo “espreme-que-sai-sangue”, clama por punição, vingança e morte. O extermínio do outro — bode expiatório — como rápida solução para os nossos problemas de (in)segurança pública. Problemas estes alimentados pelo modo de funcionamento de nossa sociedade.

Este outro cuja vida se torna matável tem sua humanidade – por extensão, o seu direito à vida – confiscado na medida em que, não necessariamente cometendo um crime, habite em determinado território e faça parte de determinado segmento social. Morre não pelo que fez, mas por aquilo que Michel Foucault chamou de virtualidade. Ou seja, pelo que supostamente pode vir a fazer. Há vidas – severinas, indignas, descartáveis – que são condenadas de antemão, mesmo a Constituição dizendo que todos são inocentes até que provem o contrário.

O que impressiona e assusta, também, é como parcela da população consome e naturaliza a associação entre pobreza e periculosidade como verdade única e chega a aplaudir e a demandar por aquilo que Nilo Batista chamou de política criminal com derramamento de sangue.

Em nome da suposta defesa da sociedade, a polícia aperta o gatilho, mas outros tantos – jornalistas, políticos, especialistas de diversas áreas, promotores, empresários, etc. – ajudam a criar as condições para que o extermínio aconteça e não soe como absurdo. Os meios de comunicação têm um papel de destaque na produção de consensos. Ajudam a preparar o terreno. Não é à toa que programas como os de Datena (em São Paulo) e o de Wagner Montes (no Rio de Janeiro) tenham tanta audiência.

“Se morreu… estava devendo!” “Absurdo é defender vagabundo!” “Está com pena? Leva para casa!”. Há todo um repertório previsível de frases prontas que vemos circular na mídia e nas redes sociais. As mesmas nos oferecem uma resposta rápida e simples para complexos problemas sociais: mata! Mais do que isso, expressam uma visão de mundo que reproduz um clamor punitivo que beira o fascismo.

Vivemos numa sociedade amedrontada e o medo, como escreve Carlos Drummond de Andrade, tem o funesto poder de esterilizar os abraços. Assustados, apoiamos políticas e práticas de extermínio do outro. Não estranhamos que os que mais morrem são jovens, negros e pobres. Não perguntamos: por quê? Não dizemos: meu Deus! Não lamentamos, nem perdemos a noite de sono. Não mudamos nosso estilo de vida ou nosso jeito formatado de pensar. Sequer estranhamos que um jovem algemado tenha supostamente se matado com um tiro na cabeça, depois de imobilizado e colocado dentro do camburão com alguns policiais. O fato correu em fevereiro de 2014 e foi narrado por Bruno Paes Manso. Que alguns morram, parece ser este o preço da nossa “paz”! Uma paz suja de sangue. Mas isso é apenas um detalhe. Afinal, os que morrem são apenas vidas severinas.

Ainda ouço, como se fosse ontem, o policial dizendo que o comandante quer sangue. Vejo o taxista reclamando dos “menores” que perambulam próximo a UERJ e o policial retrucando dizendo que não adianta prender. É para matar, mas naquele momento ele não estava a fim. Como diz Primo Levi, em “É isto um homem?”, nossa língua não tem palavras para definir a aniquilação de um homem. Talvez esta comece quando, ao olharmos um humano, o enxerguemos apenas como ameaça e não como promessa.

Este comandante, autoritário, desumano, fascista que quer o sangue de jovens pobres que habitam a cidade é, na verdade, o desejo de muitos de nós. O quanto de comandante que quer sangue há em nós? O quanto estamos dispostos a abrir mão de um estilo de vida que produz em nós o desejo de eliminar o outro?

E quando olhei para os dois garotos que circulavam próximo a UERJ, carregando apenas a fome e uma caixa velha de engraxate, eu não consegui ver outra coisa diferente do que dois aniquilados. Eles já estavam mortos. Só faltavam cair. Hoje, alguns anos depois, devem ter entrado para a estatística. Até quando o comandante vai querer sangue?

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