Por Nirton Venancio, cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema
“Vou para a cama e não quero ser incomodada. Se alguém telefonar, não me chame. Quero dormir até morrer!”, disse brincando Adiléia Silva da Rocha à empregada Rita, na manhã de 24 de outubro de 1959, depois de passar a noite com o namorado Nonato Pinheiro e amigos, bebendo, dançando e ouvindo canções na boate Little Club, em Copacabana; esticar para uma festa de grã-finos em homenagem ao Dia do Aviador no Clube da Aeronáutica, perto da Praça Quinze; e fechar a maratona no Kit Club, um bar-restaurante no final da rua Barata Ribeiro.
Pararam com o sol raiando no Posto 6 e Adiléia ainda convidou a turma para subir, ela prepararia uma bela macarronada. Mas, cansados, cada um foi para suas casas.
Adiléia era nome de batismo da nossa eterna Dolores Duran, cantora e compositora de dezenas de clássicos do samba-canção, como “A noite do meu bem”, “Fim de caso”, “Por causa de você”, “Castigo”, gênero que se destacou a partir da década de 30, e revelou Maysa, Dalva de Oliveira, Nora Ney, Ângela Maria.
O nome artístico, em homenagem à atriz estadunidense Dolores Moran, foi sugestão de Lauro Paes de Andrade, um rico e influente da sociedade carioca que, com a esposa Heloísa, promoviam grandes saraus. Eles conheceram Adiléia aos 16 anos, cantando em um concurso de calouros. Encantados com a voz da moça, a convidaram para as noites de música na mansão.
Naquela manhã de um sábado ensolarado, antes de deitar, Dolores tomou banho e brincou na banheira com a filhinha adotiva, Maria Fernanda, de um ano e meio. Por complicações de um aborto espontâneo no final de 1955, quando casada com o compositor Marcelo Neto, não podia mais engravidar. Separou-se dele por conta do machismo e atitudes violentas.
Por volta das dez da noite a empregada foi acordá-la, pois teria shows, e já estava atrasada. Bateu na porta e nada. Preocupada, entrou e encontrou a patroa morta, a mão do peito, o violão ao lado e uns rascunhos de novas canções.
Nesses papeis, a letra de “O negócio é amar”, que sua amiga, a cantora Marisa Gata Mansa, passou para Carlos Lyra musicar. O nome dele com o telefone estava em um caderninho na cama, como um indicativo, um afeto legatário. O curioso é que Dolores sempre tentou uma parceria com o compositor e nunca dava certo.
Dolores Duran sofreu um infarto fulminante, provocado por dose excessiva de barbitúricos, cigarros e álcool. Tinha precedente de outro infarto, três anos antes, e não seguiu as orientações médicas. Dizia que queria viver intensamente tudo que tinha que viver. Continuou fumando e bebendo, tentando aliviar-se de fortes crises de depressão, e entre tantos relacionamentos frustrados, a falta de um amor verdadeiro para chamar de seu.
Cativante e espirituosa, Dolores era uma “falsa alegre”. Suas letras expressam uma angústia existencial no cenário daquela época de ouro do rádio. Tinha apenas 29 anos quando foi para cama e pediu para não ser incomodada.
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Foto: Ramon Rodrigues para capa do LP duplo em homenagem à cantora, da Copacabana Discos, 1979, uma preciosidade de reconstrução técnica com orquestra e coro em 16 canais.
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