Dom Pepe de La Pampa  

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Por Marco Aurélio Vasconcellos, cantor, compositor e cronista

A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer (Mário Quintana)




A denominada região da fronteira do Rio Grande do Sul é diversificada de tudo quanto existe no resto do País. É onde quase tudo parece meio mágico. Ali vizinhamos com nossos irmãos argentinos e uruguaios. Nessa extensa região, a topografia, as culturas, os costumes e até boa parte do linguajar se identificam.  Vários termos, palavras e expressões existem tanto numa como na outra banda e o portunhol faz parte do dia-a-dia.

Eu devia ter por volta de treze anos, quando conheci uma figura imponente, que, para mim, parecia o Dom Quixote redivivo, surgido ali na fazenda de meu avô. A única diferença do herói espanhol é que estava sem armadura e sem lança, além de desacompanhado de seu cavalo Rocinante e de seu escudeiro Sancho Pança.

Foi no entardecer de um radioso dia de outubro. No horário em que o verde dos campos adquire o brilho do ouro, ele apareceu, como por encanto, na porteira da fazenda. Apoiando-se num retorcido bastão de camboim, mostrava-se preocupado com o alarido da cachorrada. De porte esguio, com densos cabelos e bigodes mouros retorcidos nas pontas, vestia uma puída bombacha cor de anil, arregaçada à meia-canela. Complementavam a indumentária uma camiseta de física encardida, uma faixa na cintura, uma vincha na testa, chinelos de sola e uma mala de garupa jogada, com displicência, por cima do ombro. 

Ralhando com a cuscada e após as buenas tardes, o capataz convidou o forasteiro para que se achegasse ao galpão, onde uma chaleira de ferro, preta de picumã, fumegava no fogãozinho de brasas. Os avios de mate, escorados num cepo baixo e com a cevadura pronta, pareciam tristes, como que aguardando prosa e o solene passar de mão em mão.

– Puxe um banco e se assente, paisano. Deve estar meio estropiado, andando de a pé pelas trilhas do pampa.

 – Le juro que cansaço no tengo. Estoy acostumbrado a varar los campos, de fazenda em fazenda, ofertando mi labor de esquila ¾ retrucou o forasteiro de fala mansa e rouca.

– O amigo é da banda oriental ou é correntino?  ¾ indagou o capataz enchendo a cuia e estendendo-a ao recém chegado.

– Sou uruguaio de Payssandu, mas vivo há muchos años no Brasil, esquilando ora aqui, ora ali. É meu ofício. A única cosa que sei fazer. Meu nombre é Pepe.  Me chaman Dom Pepe de la Pampa. Há algum trabajo de esquila acá?

– Coisa pouca. O rebanho não passa de duzentas cabeças de merino australiano. Pura ruga. Danado de esquilar. Inda mais pra peonada sem serventia aqui da fazenda. Que preço faz pra essa empreitada?

– Alguns tostones e a bóia. Hago meu ofício por pura arte e por prazer de estar e charlar com amigos nuevos. Quanto às rugas, le asseguro  que meu  fuerte é lidar com merinos. No más que dez por cento se iran quedar lastimados. Cosa poca, no? Se passar disso, mi trabajo fica solo por la bóia. De acuerdo?

 – Combinado. Se ajeite nesse quartinho de ferramentas aí do lado, onde há um catre e um caixote pra botar suas coisas. 

 – O que traigo é mui poco: uma muda de roupa, um par de alpercatas, a tesoura de esquila, uma lima de afiar, chaira para sentar fio, avios de fumo e a boina basca para quando o sol estiver caliente. Isso é tudo ¾ disse o castelhano, vincando as descarnadas bochechas em controlados e rápidos espasmos que faziam roncar a cuia.

 – Amanhã cedito, mando reunir o rebanho e trazer pra mangueira ¾ adiantou o capataz, após uma longa cusparada que se espalhou no piso de terra batida.

– E assim foram charlando por largo tempo. O chimarrão, indo e vindo, estendeu-se até a hora da janta, servida na cozinha para a peonada. No centro da mesa, a lamparina de querosene projetava sombras nas paredes de tijolos de barro e acentuava o crestado do rosto daquela gente rude de prosa mansa e fácil. 

 – No dia seguinte, antes do romper da aurora, a gauchada estava reunida no galpão, ao redor do braseiro, para mais umas mateadas. E eu ali, entreverado com eles. A voz rouca e pausada do castelhano avultava:

 –   Me contaram que lá pras bandas do Caverá tenia um tal de João da Silva que nadava como pocos. Tal qual um peixe. Desde tiquito vivia varando arroios e rios, numa espantosa intimidad com a água. Dizem até que o hombre tenia as manos palmadas como pato e se quedava casi três minutos bajo de la água, sin respirar

Os outros ouviam com atenção, trocando olhares de dúvida.

– Pues uma vez, mui cerca da Invernada Seca, numa curva do Lajeado Grande, uma súcia de pescadores mamaos estava acampada bajo de una figuera. Era uma noche cerrada, sin luna. Sombras solamente as que hacia el fuego de maricá cerca da barranca. Os hombres habian colocado uma rede para dorado e charlavam alrededor do brasero, contando causos e caçadas de capincho. A su lado, três linhas de mano presas a taquaras de bom calibre, com guizos nas puntas.

– João da Silva conocia os pescadores e sabia donde se quedava o acampamento. Se fué a cavalo algumas braças arroio arriba. Prendió su montaria numa aroeira mansa, sacó toda a roupa e se fué a la água. Pues o taura se dejó levar pela corrente fria, sin bracear, para no denunciar sua presença. Quando se acercó do acampamento, tomou ar e mergulhou, tentando encontrar uma das linhas de mano. Entonces, segurou firme uma delas, lejos de la fisga, e puxou com fuerza.  O guizo tilintou e os pescadores acurriram: só podria de ser peixe mui grande. Puxa que te puxa e nada. Até que João da Silva se dejó levar a la flor d’água, quando dió um cavernoso “B0A NOOOITE!”  Os pescadores se mandaram à la cria e só tempos después tiveram conocimiento da brincadeira del amigo.

A peonada ria a mais não poder.

– Conte mais uma, Dom Pepe! ¾ pediu um peão de tipo indiático, atiçando o braseiro.

 – Calma, paisanos. Hay que se contar aos poquitos, para que não se esgote tudo que tengo na cabeça. No correr da esquila contarei otras.

 Após o café, o capataz convocou os peões para trazerem o rebanho.  Enquanto isso, com movimentos lentos e precisos, Dom Pepe se preparava: passou a lima fina na tesoura de tosquiar, assentou o fio com a chaira e estendeu, por baixo do telheiro, ao pé do brete de ovelhas, um grande e ressequido couro de boi, onde exerceria seu ofício.

Encerrado o rebanho na mangueira, uma a uma, as ovelhas, maneadas pelos quatro pés, iam sendo colocadas diante de Dom Pepe. Sem camisa, o castelhano exibia longos e salientes feixes de músculos, rijos como cerne de eucalipto. Com o ossudo joelho a comprimir o pescoço de cada ovelha contra o chão, Dom Pepe ia desbravando o corpo do animal, enquanto os velos, pela ação precisa da tesoura, se abriam e se aninhavam em camadas por sobre o couro estendido. De quando em vez algum corte numa ruga. Coisa pouca. Não era por nada que o gringo havia alardeado competência no ofício.

 – Eta bichito enrugado! Tá pelada a coruja desta tiquita. Traiga otra, paisano! ¾ comandava, divertido, Dom Pepe.

 Repassando o fio da tesoura para se plantar num enorme carneiro de guampas retorcidas, o castelhano desfiou mais um causo:

 – Pues tempos atrás, lá pelas bandas de Dom Pedrito, tive um ajudante. Um gordito de mala cabeça e poca competência. Mas não duró mucho seu ajutório. Se lastimó mui sério num acidente incrível. Havíamos saído de uma fazenda en el medio de la mañana. Caminhamos umas três léguas e paramos cerca de uma represa para descansar um poquito. Un viejo umbu oferecia sombra larga e banco para nuestros traseiros. Enquanto gambeteávamos a fome com umas gajetas e nacos de marmelada à sombra do umbu, o gordito deu com os olhos num jacaré de papo amarelo dormitando al sol, num canto da taipa. E, todo entusiasmado, apontava:

 – Olha lá, Dom Pepe! Que rico jacarezito ali perto daqueles aguapés. Tá com quase todo o corpo fora d’água. Vou pegar o bicho, pode crer. Tenho no saco uma piola forte de quatro braças. Vou laçar o demo e me divertir um eito. É só chegar devagarito por detrás da taipa, rastejar até o canto, botar o olho no jaca, confiar na mão e záz: laço no pescoço! Vai ser como tirar dinheiro de cego.

 – Déjalo, paisano! Não te hace mal ninguno. Que le parece? Descansamos um poquito más e ganamos a estrada, certo?  Ponderou Dom Pepe.

O magro esquilador fez uma larga pausa para virar o carneiro de lado e tomar fôlego, momento em que um peãozinho sarará, com a curiosidade aguçada, indagou:

 – E aí, Dom Pepe, o gordinho pegou o jacaré?

  – Pues o alcaide, sin me dar oídos, buscó no saco a piola, fez uma laçada e empezó uma larga volta, para llegar por detrás da taipa. Estava num dia de suerte. Suerte ou azar? Yá se van a ver. Sua astúcia dió resultado. Escondido em parte pela taipa, o gordito logrou poner a laçada no pescoço do papo amarelo, que era pequenote. Tinha poco más de metro e meio e rabanava como um possesso. E o gordo ventana segurando firme a punta da piola. Com mucho custo levou o bichito até um moiron de coronilha, onde lo dejó suspenso. Bem atado e esperneando. Vez por otra, o maula cutucava o pobrecito com uma comprida adaga, haciendo o bicho pinotear em desespero. De pinote em pinote a laçada que lo prendia no moiron se afrouxou.

– Tentando ajustar o nó, creo que o mala cabeça se llegó mui cerca do jaca. E, quando se deu conta, o jacarezito cerró as mandíbulas em torno de seu braço. O gordito dejó escapar um urro de dolor. Acurri rápido e meti o cajado na cabeça da fera, que soltou o braço de mi comparsa. Lo amparé até a sombra do umbu e enquanto improvisava uma atadura na ferida, escutei um rumor de conducción. Era uma  vieja camioneta com dos paisanos. Pedi ajuda e salimos em busca de socorro. O gordito foi atendido, pero se quedó imprestable para o ofício. E así perdi mi companhero de esquila. Después de eso todo, prefiro andar solito por la pampa.

– E o jacaré, Dom Pepe? Indaguei eu, ansioso por saber o desfecho do episódio.

– Pues na gana de socorrer o gordito, me olvidei do jaca pendurado no alambrado. Por supuesto, foi coureado por algum passante, empalhado e dado como regalo para enfeitar a sala de algum contador de lorotas.

                                                       

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