Marlon Lamar, da Portela, vive trajetória de determinação, ao conciliar ensaios e apresentações ao lado da porta-bandeira Lucinha Nobre com a faculdade de Medicina, em São Paulo
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Marlon e Lucinha, nos ensaios durante a noite em São Paulo: esforço e generosidade. Foto acervo pessoal
Quando a escola de samba mais importante encerrar seu desfile na Sapucaí, no início da madrugada de domingo, o guardião da sua bandeira dará por realizada uma de suas missões impossíveis. Por causa da mudança no calendário da folia, devido à pandemia, Marlon Lamar, o jovem mestre-sala da Portela, precisou conjugar os massacrantes estudos na faculdade de Medicina – no interior de São Paulo – e os treinos intensos para dançar com a porta-bandeira Lucinha Nobre. Trabalho duplo, próprio aos fortes.
Nascido há 24 anos em Cidade Tiradentes, bairro pobre da Zona Leste de São Paulo, Marlon se encantou pela dança dos meneios e minuetos ainda criança, na Príncipe Negro, escola pequenina que ensaiava em frente ao prédio onde morava. Firmou-se como mestre-sala, campeão na Império de Casa Verde e na Dragões da Real, na folia paulistana – até ouvir o convite-desafio.
“Tem coragem de ir para o Rio ser mestre-sala?”, perguntou, no seu estilo sem rodeios nem mesuras, Lucinha Nobre, uma das maiores porta-bandeiras da história do Carnaval, ganhadora de cinco Estandartes de Ouro. Eles se conheceram na quadra da Império e a carioca (então na Unidos do Porto da Pedra, da segunda divisão) impressionou-se com o jovem dançarino.
“Não tinha nada a perder, aceitei”, relembra Marlon, nascido na parte da sociedade brasileira que precisa encarar – e vencer – os muitos desafios do caminho. Criado pela mãe, manicure e diarista, com outros cinco irmãos, ele aprendeu cedo que a vida seria ralação e superação. Sem medo – tanto que ele decidiu, ainda adolescente, que, contra todo um país, seria médico. “Ouvi muito que era loucura, perda de tempo, que aquilo não era para mim. Mas segui em frente”, narra ele, misturando orgulho e tranquilidade.
Desde 2021, a outra “missão impossível” está sendo cumprida. Após anos de aplicação solitária nos estudos – “Aprendi a montar uma redação no YouTube”, relata, num traço autodidata –, ele conquistou uma vaga na Universidade São Leopoldo Mandic, em Campinas, e, ao ficar em sexto lugar na prova, ganhou bolsa integral mais ajuda de custo de um salário mínimo. Hoje divide laboratórios e salas de aula com colegas do andar de cima da sociedade, que pagam surrealistas R$ 12.580 de mensalidade.
Quando Lucinha foi convidada para empunhar o tradicional pavilhão da Portela, levou o parceiro junto. Por três carnavais – 2018, 2019 e 2020 –, os dois se apresentaram na Passarela do Samba, como resultado da mesma fórmula: terminava o ano letivo, Marlon vinha para o Rio e ensaiava até o dia decisivo. Deu para vencer até a xenofobia que resiste nas escolas, perseguindo paulistas como ele, a ex-rainha do Carnaval Camila Silva e até a apresentadora Maju Coutinho.
Diante do desafio que viria, nem conta. Devido à pandemia, o desfile de 2022 foi adiado de fevereiro para abril – com o ano letivo bombando na São Leopoldo Mandic. Seguia vivo o preconceito com a cultura popular. “Sempre tive de explicar o que significa escola de samba, o envolvimento das pessoas, mas eles não conseguiam entender”, lamenta ele. “Os professores ficavam inconformados quando dizia que eu era do Carnaval. Não sabiam nem a importância da Portela”. Obviamente, não se cogitou aliviar a carga horária de aulas – diariamente das 7h30 às 19h! Renasceram os conselhos para ele desistir do samba.
Sem chance. A solução surgiu numa conversa com o presidente de honra da Viradouro, Marcelo Calil, que conheceu o mestre-sala quando era patrono da Porto da Pedra. “Lucinha poderia ir para São Paulo”, sugeriu o dirigente. A consagrada porta-bandeira deu seu show de generosidade e topou na hora – mudou-se, em março, para o pequeno apartamento do parceiro, no condomínio em Araras, perto do Aeroporto de Viracopos.
A partir dali, virou “moleza”: da faculdade, ele ia para academia até 21h e depois, até meia-noite, ensaiava com seu par. “Foi jeito que encontramos. Mais uma experiência que virou uma conquista”, resume Lucinha Nobre, que acumulou fãs improváveis entre os colegas bem nascidos de Marlon. Eles se comoveram com o esforço e passaram a acompanhar os treinos, encantados como todos que se aproximam do mundo das escolas de samba. No bojo, novos integrantes para a numerosa torcida portelense.
Não dá mesmo para ficar indiferente. Um dos nove quesitos da disputa no Sambódromo, o casal de mestre-sala e porta-bandeira luta, sozinho, pela nota que tem o mesmo peso da bateria (300 componentes), harmonia ou evolução (a escola toda). São dois seres humanos em busca dos pontos que podem decidir tudo. Difícil – como fazer faculdade de Medicina.
“Quero conciliar para sempre”, avisa o futuro intensivista Marlon, com serenidade, planejando a própria trajetória de “missões impossíveis”. Normal, para quem passou a vida em escolas públicas, com livros comprados em sebos. “Vou me tornar médico e fazer trabalhos sociais em escolas de samba. Não vou desistir nunca do Carnaval” decreta. “Quero que as outras pessoas vejam que é possível e acreditem nelas mesmas”, receita o doutor mestre-sala.