Do cotidiano de trabalhadores portugueses, livro analisa os impactos de crises e “novos contratos”. Como eles deterioram laços solidários – e impõem solidão e culpa pelos insucessos. Mudanças estariam forjando geração de desesperançados?
Por Ladislau Dowbor, compartilhado de Outras Palavras
O livro é na realidade um relatório de pesquisa, sobre como as pessoas enfrentam as novas realidades do mundo do trabalho em Portugal, focando em particular o trabalho precário, o desemprego, a perda de rumos. Como pesquisa, em termos metodológicos, é inovador, porque detalha 53 casos concretos, e analisa os seus percursos, desde a origem social, a escolaridade, os seus diversos sucessos e insucessos no trabalho, e inclusive o impacto da pandemia. Isso permite ter uma visão das transformações deste universo, e uma compreensão de como o histórico das pessoas pesa sobre o seu futuro, e de como mudanças sociais e econômicas deslocaram as oportunidades.
O mundo do trabalho é visto de maneira compreensiva, pois se trata não só dos contratos, existentes ou não, ou da precariedade do enquadramento legal, mas também da rotatividade entre empregos, da nova sociabilidade entre os trabalhadores, do papel dos sindicatos, da erosão das políticas de seguridade social. Ou seja, através dos percursos, com numerosas citações dos próprios trabalhadores entrevistados, temos uma visão sistêmica das mudanças, dos eventuais sucessos e das angústias. Uma radiografia em profundidade do novo universo que enfrentamos: em vez da amplitude das amostra e estatísticas, temos a profundidade do vivido, na dimensão econômica, social e emocional do novo universo.
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O contexto mudou, e continua mudando, de forma acelerada. O mundo industrial já não é uma fonte de emprego tão significativa, expandiu-se o que chamamos de “serviços”, que em Portugal representam três quartos da economia. Neste conceito vago e pouco científico, escondem-se realidades profundamente diferentes, e grande parte do setor informal e da sobrevivência com biscates. Um segundo eixo de transformação, o avanço tecnológico radical, permite contratações fragmentadas e pontuais, trabalho disperso e não presencial, um mundo profundamente diferente do “pertencimento” a uma empresa, do chamado emprego, com contrato, estabilidade e direitos. Frente ao universo onde dominam os “serviços” e a nova conectividade, com a fragilização profunda dos vínculos, e a ampliação dos dramas do desemprego e da insegurança, o sistema de seguridade social não evoluiu, continua burocrático e pouco capaz de enfrentar a diversidade que as transformações estão trazendo, em termos de vulnerabilidades.
Acrescente-se a isso a fragilização das famílias. Na ampla família tradicional, com pais, avôs, tios, filhos, a solidariedade entre gerações, entre as fases ou momentos produtivos ou improdutivos, se manifestava no lar. Hoje, na Europa, o domicílio tem em média 2,4 pessoas. No Brasil ainda temos 3,1, mas se reduzindo rapidamente. Na família ampla, quem estava desempregado, ou idoso, tinha por igual um lugar à mesa e a cama para dormir. A reprodução social entre gerações era sustentada pela família. Na família nuclear moderna, há pouco espaço para o tio, para o avô, gera-se uma ruptura social. Na Suécia, por exemplo, a perda da solidariedade familiar é compensada com amplas políticas sociais, mas em Portugal, como vemos no livro, temos menos família no sentido amplo, e pouca ou insuficiente política de seguridade.
O que o livro sugere, nos vários percursos analisados, é a convergência da evolução para o universo confuso dos “serviços”, os impactos de fragmentação econômica e social das novas tecnologias, a estagnação ou recuo das políticas de seguridade social – em particular afetadas pelas políticas de austeridade – e a redução da família como base de solidariedade social. Na evolução dos diversos percursos constatamos como essa convergência desestruturante está criando uma geração de pessoas com fragilidade econômica, com difícil reconstituição da sociabilidade, e em boa parte privadas do sentimento de escolher a sua vida, de se apropriar dos seus rumos. São empurradas segundo os momentos imprevisíveis, para uma tarefa que surge, uma remuneração informal paga em dinheiro, com vagas promessas, e eventualmente um emprego formal em algum momento, e por pouco tempo. Fala-se em liberdade, mas na realidade é uma corrida pela sobrevivência: é uma liberdade sem escolhas. As oportunidades surgem e são pegas, mesmo mal pagas ou fora do interesse da pessoa. Amplia-se radicalmente o que temos chamado de uberização, de gig-jobs, de precariado. Liberdade sem oportunidades não é liberdade.
O estudo amplia a visão para as dinâmicas estruturais mais amplas, em particular a mudança das relações de poder de negociação na sociedade. Os sindicatos, com a diversificação e fragmentação dos universos do trabalho, perderam muito da sua capacidade de negociação, o que favorece a expansão da terceirização, da contratação informal, da perda de estabilidade na vida das pessoas. Os partidos políticos, pelo distanciamento, na percepção dos entrevistados, entre os seus dramas e desafios, e os amplos discursos políticos, perderam muito do seu significado. Grande parte dos entrevistados vota sem convicção, quando vota. As organizações da sociedade civil, por sua vez, são importantes por gerar instrumentos coletivos de pressão e sentimento de pertencimento a uma comunidade, mas sofrem igualmente o impacto do universo online que fragilizou o convívio comunitário, do bairro, das cidades. Gera-se uma fragmentação social muito mais ampla, e um descolamento entre a política no sentido amplo, e os dramas do cotidiano das pessoas. Em boa parte, é uma sociedade atomizada.
Uma dimensão que aparece com força é o absurdo de continuar a se atribuir as dificuldades das pessoas em sobreviver – e na amostra aqui temos também pessoas com curso superior e até com mestrado ou doutorado – às próprias pessoas, que não estudaram o que deviam, ou que não souberam se adaptar, ou porque não se esforçam o suficiente. O drama da reestruturação social é jogado em cima dos indivíduos, gerando sentimento de culpa, enquanto os que se dão bem no sistema, cada vez mais uma minoria, passam a defender a tese do merecimento: se saíram bem porque são empreendedoras, remuneração e posição merecidas. Na realidade, o que falta são oportunidades, e não vontade de progredir na vida. Em particular, as pessoas são empurradas a pegar qualquer coisa que lhes assegure um rendimento, pressionadas pelo aluguel quando não pela fome: perde-se o tão importante sentimento de não só poder resolver a sua vida em termos materiais, como de ser útil para a sociedade, de fazer algo que faça sentido. Não vão encontrar isso num call-center ou num Uber.
Lembremos que Portugal não é um país pobre. A produção anual de bens e serviços, o PIB, representa 5.100 euros por mês por família de 3 pessoas. Mas a desigualdade é dramática, não no nível do Brasil sem dúvida, mas o suficiente para que o país seja drenado por uma minoria rica e em particular pelas corporações financeiras que aproveitaram os três momentos mais críticos: a crise financeira de 2008, a política de austeridade imposta pela troika em 2011, e a partir de 2020 a pandemia. Esta última inclusive faz parte da pesquisa.
Uma belíssima leitura, pela capacidade de nos fazer entender melhor como os diversos dramas que hoje enfrentamos se articulam, e como as crises de perda de sentido na vida, as dificuldades de sobrevivência, o peso das solidões, o travamento do progresso econômico, o sentimento de ser único culpado pelos insucessos, pertencem a transformações estruturais que mudam os grandes rumos da sociedade. Estamos à procura de novos caminhos, e o olhar que o livro traz, de como este universo aparece quando o olhamos pelo lado de baixo, ajuda muito, sem dúvida para o caso de Portugal, mas para o Brasil também. Aliás, na amostra, estão também brasileiros que migraram para Portugal para tentar encontrar rumos, e encontraram insegurança. Novos rumos estamos procurando todos, e não só no andar de baixo.
A análise é mais significativa ainda quando sabemos o que deve ser feito, com iniciativas como renda básica, redução de jornada, políticas públicas de emprego, ampliação das políticas sociais. Em termos tecnológicos, sociais e econômicos, o mundo mudou, mas a política, no sentido amplo de organização equilibrada da sociedade, continua no século passado. As soluções vão muito além da “geringonça”.