E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, coloca o poeta Drummond em nosso caminho. Polêmica spoiler: Cesar sempre achei uma sacanagem utilizarem Drummond, uma pessoa sempre reservada, retratado em cédula de dinheiro.
Quando eu era pequeno, havia em circulação uma moeda grande que eu julgava ser a cara da lua cheia. Duas moedas daquelas nas mãos de uma criança e já se ia à lua e voltava. Isto porque havia uma maquininha que funcionava assim: colocavam-se moedas, girava-se uma manivela que, depois de uns piripaques, fazia com que se saíssem uns amendoins coloridos enfeitados, por vezes já bem velhinhos.
Em 1989, eu tinha dezoito anos. Lembro-me de que se lançou a cédula de cinquenta Cruzados Novos, a do poeta Carlos Drummond de Andrade, na qual se lia o poema “Canção Amiga”.
Dinheiro é um pedaço de papel, não me amarra dinheiro, não. É o que geralmente eu penso a respeito do vil metal, mas aquela nota me pegou pelo viés do valor sentimental.
Vale a pena consultar a enciclopédia Google para saber por que cargas d´ água se escolheu justamente aquele poema e não, digamos, o poema em que Drummond descreve como engraçadas as duas bandas da bunda ou aquele outro em que ele fala de coroas dentárias.
Drummond se foi em 1987. Há uma estátua dele no Calçadão da praia de Copacabana que virou ponto turístico. O escultor, cujo nome não sei, se baseou em uma foto na qual o poeta está sentado em um banco como quem passa o tempo na praça, olhando para fora, olhando para dentro.
De vez em quando, alguém rouba os óculos da estátua. E aí temos duas notícias; a primeira fala do roubo dos óculos; a segunda, de sua reposição.
Ontem fiquei sentimental ao ouvir a versão cancional do poema na voz de Milton Nascimento (salvo engano, incluída no álbum “Clube de Esquina 2”, de 1978). Chorei como criança fosse, como se tivesse visto o outro lado da moeda, o outro lado da lua.
Faço as contas: antes de se tornar cédula, portanto, “Canção amiga” tinha virado canção propriamente dita. Abaixo está a letra:
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos
Caminho por uma rua
Que passa por muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças
Além da voz de Milton Nascimento, eu adoro estes verbos no presente do indicativo; as imagens das estrofes (falar como dois olhos, a rua que passa em muitos países, a distribuição sem estardalhaço de um segredo, o diamante, símbolo de beleza e dureza, formado pelo amor carnal, o adormecer e o acordar de homens e crianças, fruto da intervenção poética que visa a protegê-los para que não esmoreçam diante das dificuldades da vida).
Quanto a esta última imagem, a entende rapidamente quem já despertou no meio da noite de seu sono para ver se o filho está ou não descoberto na cama, afinal faz frio.
“Acorda pra vida, poeta!”, digo para mim mesmo, esquecendo-me de que talvez poeta eu não seja.
E assim concluo:
Em dias tão imprevisíveis como os que vivemos, dias em que o rato parece ter sobrado da fatura, me torno tão melancólico quanto o eu-lírico drummondiano ao ver em negativo a imagem da montanha da infância ter sido escavada como um dente com cárie profunda.
Eu vejo a imagem do pico do Cauê, em Itabira, terra natal do poeta, no livro de José Miguel Wisnik (“Maquinações do Mundo: Drummond e a mineração”, Companhia da Letras, 2018) e me pergunto qual foi o custo de tamanha empreitada. Qual foi afinal o custo da empreitada?
Mas, depois de tanto estrambote melancólico, saio assoviando o jingle do Lula como se eu fosse Chaplin, porque eu sou assim.
Quanto à cédula de Drummond, a inflação a comeu tão rapidamente que nem te conto. Fica a imagem do poeta, entretanto, suspensa no ar, valendo muito mais que qualquer dinheiro.
Foto da capa do post: Américo Vermelho, feita em 14 de maio de 1984, na manhã em que Carlos Drummond de Andrade teve a informação do suicídio do amigo, memorialista Pedro Nava, na noite do dia anterior.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.