Por Naine Terena, compartilhado de Projeto Colabora –
Afastados de suas aldeias, sofrem com a solidão, a saudade de casa e o descaso absoluto dos governantes, que sequer garantem lugar devido nas filas de vacinação
Na terra que maltrata os indígenas desde a invasão portuguesa (aprendemos que não foi descobrimento, né??), há mais de 500 anos, a covid-19 atingiu duramente esses povos originários. O cenário conjuga tristeza, perdas e abandono para etnias vítimas ainda de muito preconceito. Esquecidos pelos governantes, os indígenas amargaram muitas perdas e se viram amputados de vários rituais. E o futuro não se desenha melhor. A reportagem especial “Pandemia, um ano – olhares indígenas femininos” oferece o relato de Naíne Terena, sobre o que acontece em Cuiabá.
“Perdas, traumas e pouco apoio ocuparam a vida de indígenas que vivem em centros urbanos”, constata Soilo Urupe Chue, da etnia Chiquitano. Graduado em psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso e assessor da Federação Mato-Grossense dos Povos Indígenas (Fepoimt), ele aponta a impossibilidade das famílias de irem para seus territórios originais como decisiva para as fatalidades. Além disso, a permanente invisibilidade aos olhos da sociedade contribuiu para as dificuldades.
Segundo Chue, residem em Cuiabá mais de 70 famílias – inclusive ele, esposa e filhos. Quase todas não conseguiram retornar aos seus territórios, trancando-se em casa e vivendo situações traumáticas. “Muitas famílias chegaram a ficar em pânico, ilhadas, sem poder chegar a seus territórios nem sair da cidade. A rotina dessas famílias foi totalmente alterada e, para piorar, os que perderam parentes ficaram mais abalados”.
Chue fala do cotidiano que ele acompanhou pela Fepoimt, responsável pela distribuição de kits de higiene e cestas básicas na capital do Mato Grosso. Segundo o Censo do IBGE (2010), cerca de 1.600 pessoas se declararam indígenas em Cuiabá. Os dados da Federação apontam para a situação crítica no que diz respeito ao atendimento a saúde e apoio na geração de renda. Muitos não são assalariados e vivem da venda de artesanatos, sofrendo brutal queda de receita com a falta de vendas decorrente da pandemia.
A presença de indígenas nas cidades padece num rosário de preconceitos – pela escolha do local de residência, normalmente imposta por razões econômicas, eles teriam “deixado de ser índios”. O pensamento distorcido é pautado e reproduzido na desinformação sobre os reais motivos da escolha por centros urbanos, entre eles a busca por emprego, tratamento de saúde e estudos.
No último grupo, estão alunos da Universidade Federal de Mato Grosso, que integram o Programa de Inclusão Indígena (Proind). Muitos não conseguiram retornar a suas aldeias e acabaram passando 2020 na cidade, onde também tentaram manter o ritmo de ensino remoto para cursos que aderiram a essa modalidade. Segundo Kaya Agari, da etnia Bakairi e representante dos estudantes indígenas na UFMT, desde abril de 2020 ela e sua família retornaram à aldeia, porém as aulas remotas foram dificeis de serem cumpridas, já que a internet rural é precária.
Silvano Chue, estudante de Direito da UFMT conta que foram muitos desafios ao longo de 2020. “Primeiramente, como indígena, ficar na cidade já é um desafio, pois a vontade de estar na aldeia é sempre maior. Como estudante indígena, cumprir quarentena na aldeia seria o ideal, mas há vantagens e desvantagens. Estaria com minha família, vivendo o meu modo de vida, mas não teria os mesmos recursos para os estudos. Na cidade, há uma possibilidade maior de focar nos estudos”, explica, citando a óbvia proximidade da instituição de ensino. “Mas a possibilidade de faltar dinheiro aumenta, já que não há nada gratuito. Na maioria das vezes, os estudantes indígenas sofrem com essas crises “, comenta.
Em Cuiabá, também vivem famílias da etnia Warao, povo indígena da Venezuela. Dona Maria e seu Abel fixaram residência na capital em meados do segundo semestre de 2020. A família passou por Manaus logo que chegou ao Brasil, num grupo de pelo menos 600 pessoas da mesma etnia. Em Cuiabá, não há números precisos de quantos são os Warao hoje.
Enquanto o casal narra a trajetória até o Brasil e os motivos que os trouxeram, observo a o inteiro da residência com os armadores de redes e o uso da língua Warao a todo momento. A falta de oportunidade, renda e produtos de manutenção básica para a sobrevivência tornaram a vida na Venezuela difícil, explicam eles. Nas fotos, o território com muita vegetação e rio de onde tiravam boa parte da alimentação – tudo radicalmente diferente do atual local em que vivem. Artesãos e agricultores, tinham como base alimentar os produtos que plantavam e se originavam da terra onde viviam. O deslocamento até a cidade para venda de artesanato sempre foi difícil, assim como a compra de remédios e roupas.
Em Cuiabá, eles buscaram uma residência para reunir toda a família, incluídos irmãos e primos. Não conseguiram emprego fixo, e seu Abel realiza trabalhos autônomos enquanto Maria pede dinheiro em vias públicas. Ela conta que não gosta da vida de pedinte, mas não consegue nenhum tipo de emprego e muito menos, produzir artesanato. Na casa ao lado, cerca de dez Warao aguardavam para relatar agruras semelhantes. As mulheres garantiram ser muito trabalhadoras e estão à procura de oportunidade. E a pandemia? “Nenhum Warao foi contaminado, porque seguimos rigorosamente os cuidados com higiene e afastamento físico”, festeja Maria. Eles narram que não encontraram em Cuiabá nenhuma erva medicinal que pudesse auxiliar na prevenção da covid-19, mas que na Venezuela, em seus territórios certamente estariam fazendo uso das plantas típicas. Durante a entrevista de pelo menos duas horas, ambos mantiveram o distanciamento nós e as máscaras faciais cobrindo boca e nariz.
Para sobreviver, os Warao também reúnem latinhas e garrafas para vender. No fim, pergunto como é ter deixado seus territórios, onde a abundância da natureza nem se compara aos 40 metros quadrados da casa que abriga pelo menos cinco pessoas. Abel respira e olha para cima. “Às vezes é preciso trocar uma coisa por outra para a sobrevivência de todos. Nós nos acostumamos com a vida urbana, pois o principal é manter a família junta, ainda que com as interpéries”.