A coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, conta continhos de Natal. Desta feita, o inspirado César nos presenreia com singelas e bem embrulhadas histórias natalinas. Estes presentes do César me levaram a Machado de Assis: “A folha branca pede-lhe inspiração; mas, frouxa e manca, a pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o verso adverso, só saiu este pequeno verso: “Mudaria o natal ou mudei eu”.
“Prezado Washington, escrevi essas historinhas como um cartão de Natal para os que me acompanharam ao longo da jornada deste 2022. No caso deste texto, não houve roteiro: simplesmente sentei-me em frente ao computador e fui as escrevendo, uma a uma. Depois escrevi este “nariz de cera” à guisa de introdução.
Obviamente, algumas delas têm como origem um fato que ocorreu comigo ou que foi observado por mim. Mas nenhuma delas ocorreu assim literalmente, isso lhe garanto. Eu sou da premissa de que um escritor deve recolher alguns fatos para então poder distorcê-los à vontade. Sob tal ponto de vista, interessa-me a tradição.
Em outras palavras, a tradição é minha estrela-guia.
Apesar do Natal ser uma data triste para mim, gosto da história do menino Jesus. Gosto dela enquanto história, devido à força simbólica encantadora que ela possui.
Gosto também de rabanadas e de bacalhau. E de quebrar nozes, habilidade que valeria uma historinha por si só!
Desse título eu gostei muito. É uma tradução quase literal da expressão em inglês: “It is the thought that counts”(algo como “É só uma lembrancinha”, em português). Mas é boa porque ativa os múltiplos sentidos da palavra contar.
Contar, significando aquilo que é mais importante, que mais tem interesse, fazendo assim a diferença entre preço e valor, pois afinal lembrar de alguém é mais importante que o preço do presente; contar, no sentido de narrar, de levar historinhas adiante. Neste caso, não sou eu quem conta as histórias, mas as lembranças.
Você deve ter percebido que narro muito a partir de lembranças, sejam elas inventadas ou não. Sigo a tradição dos narradores, mas não ao pé da letra.
Vamos às histórias!
1 – O pai levou o menino à igreja para assistir a um auto de Paixão de Cristo. O menino, muito novo ainda, teve uma experiência semelhante a dos índios que tomaram como realidade cenas de um filme: assustou-se, suspendeu a descrença, sem saber nem o que significava suspender nem o que significava descrer. Enfim, acreditou que o pobre homem de barba, o Jesus, apanhava de centuriões e se comoveu.
Já mais velho, ao se recordar da cena, o já não tão menino chegou à conclusão de que os cassetetes eram na verdade longas buchas vegetais. Isto é, era impossível que tivessem ferido o homem que interpretava Jesus. Aquilo tudo era uma encenação, afinal.
O já não tão menino já era homem feito quando testemunhou um linchamento em uma das ruas do bairro onde morava. Os detalhes ainda estão a ferir sua memória, bastando que se evoquem exemplos de barbárie cotidiana para trazê-las à tona.
Para ele, aquele homem que foi espancado, que foi punido exemplarmente em ato de justiçaria, apesar de tudo que tinha feito, era também um pouco Jesus.
2 – A menina tinha uns oito anos. Na festa de encerramento da escola, uma das professoras decidiu que ela, uma criança, levaria um bebê de verdade até o palco onde havia um bercinho coberto de palha, pois se encenava um auto de Natal.
Graças a Deus, depois de certa hesitação, decidiu-se levar uma boneca. Imagine se a criança deixasse cair o bebê. Seria um Deus-Nos-Acuda daqueles.
Às vezes se peca por excesso de realismo.
E foi assim que, pelo menos naquela festa de encerramento de escola de subúrbio, o menino Jesus na verdade era uma menina: era uma boneca que se chamava Júlia.
3 – A menina não largava aquele Papai Noel que ganhou de presente de seu pai. Que boneco engraçado: todo vestido de Papai Noel balançando o popote até o chão.
Tanto não largava que a menina o levou para a casa de uma amiguinha. As duas riram um bocado daquele Papai Noel Funk. Depois esqueceram o pobre coitado na sala e foram brincar no quarto.
Salto!
A amiga da menininha pediu emprestado ao avô um Papai Noel que andava de velocípede. O avô atendeu ao desejo da neta mesmo sabendo que muito provavelmente o Papai Noel voltaria sem óculos ou sem velocípede.
A notícia, aliás, não sairia em jornal nenhum, pois só se noticia furto de óculos quando estes fazem parte da estátua de Carlos Drummond de Andrade.
“Pra que me tiraram os óculos, meu Deus? / Não sabem que das vistas sou fraco?”, diria o poeta em tradução ruim minha, do “Poema de sete furtos”.
De furto de bicicleta, então, nem se fala. Hoje em dia tem bicicleta que custa tanto quanto um automóvel de segunda mão. Eu, que sou do tempo da Monark e da Berlineta, fico meio confuso com tanta oferta.
Voltando ao assunto, as meninas, cada uma com seu Papai Noel, se encontraram antes do Natal. Como as pilhas das crianças duram mais que as pilhas comuns, os dois bons velhinhos pararam antes das meninas, que brincaram para valer e, se duvidar, ainda estão brincando.
4 – Ao lado da robusta árvore de Natal circundada por presentes, havia um presépio simples, sem presepada. As estátuas de gesso ainda estavam bem pintadinhas.
É que havia mais zelo no cuidar deles do que, por exemplo, houve com a Branca de Neve e os sete anões de jardim, que ficam expostos a intempéries. Deles não sobrou muito.
De súbito, o menino perguntou o que era manjedoura. O pai explicou. A mãe também. Depois o menininho perguntou se a estrela-guia poderia ser considerada como um Google Maps da época, analogia que deixou os pais boquiabertos.
Perguntou o que era incenso e mirra, o que fez com que o pai recorresse ao dicionário, pois ele não se lembrava mais o que significava a palavra. De birra ele se lembrava muito bem! Tinha filhos pequenos, não é mesmo?
O menino não disse, mas achou bonita à beça a história do menino Jesus. Ficou ruminando ao longo da ceia dentro de sua cabeça palavras e expressões tais como “manjedoura”, “manjar”, “manjar dos deuses”, “reis manjos”, “marmanjos”.
O menino queria saber tudo. Era a fase para ele, como se diz, das grandes indagações. Ele quebrava nozes e se indagava com a semelhança que elas tinham com o cérebro. Isto é, quando elas não saiam esmigalhadas, quando vinham com um toque de casca.
Um universo em uma casca de noz… Era ou não era uma expressão sintética bonita?
Talvez ele mais à frente possa chegar pelos próprios pensamentos à conclusão de que somos todos filhos de Deus. Ou não.
Nota do editor: imagens de Elifas Andreato, que partiu em 2022 antes do Natal
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.