Por Cícero César Sotero Batista, doutor, mestre em Literatura, professor numa escola pública na Zona Norte do Rio de Janeiro
Vivo em um país violento, em um estado violento, em uma cidade violenta; trabalho em um bairro violento, em uma rua violenta com um grande número de escolas nos arredores.
Cheguei à escola faltando uns dez minutos para às 7h30. No pátio, fiquei à frente da minha turma e a levei para o refeitório para o desjejum. Quando adentraram os interiores da escola, todos estenderam as mãozinhas para levar o esguicho de álcool, protocolo que ainda seguimos à risca. Eu estava no refeitório quando ouvi o zunzunzum: pelo que entendi, uma professora estava tendo o carro roubado.
A inspetora trouxe para dentro da escola os alunos e os responsáveis que aguardavam do lado de fora, na rua, onde tudo ocorria.
Em situações como essa, costumo ser muito precavido. Não ponho a cabeça para fora, protejo quem está mais próximo de mim.
Vi uma menina passar aos prantos.
Todos nós estávamos muito assustados, mas alertas.
Pelo que entendi, os assaltantes, que não estavam armados, não levaram o carro da professora.
Se armados estivessem, talvez coisa pior tivesse ocorrido.
No Rio de Janeiro, coisas piores ocorrem todos os dias.
Expliquei aos alunos da minha turma o que se passara. Não menti para eles.
Saiu de minha boca um “Graças a Deus” que não combina muito com o que eu penso, mas o deixei chegar, uma vez que a expressão se encaixava bem com as circunstâncias.
Acalmaram-se; mas não pude deixar de observar que uma de minhas alunas pediu para que eu fechasse a porta.
Porra, mal havia rompido a manhã!
Não pude deixar de me lembrar do que testemunhou um camarada que trabalhou comigo na mesma escola.
Ele, professor de História, foi transferido para uma escola, então recém-inaugurada nas redondezas.
Foi lá, nesta escola que era considerada a menina dos olhos do projeto de educação da prefeitura, que ele perdeu uma aluna para uma bala.
Esse rapaz se transformou. Já era excelente pessoa, quiçá excelente professor.
Sendo educado e bonito, já deve ter passado por poucas e boas com aqueles que têm inclinação em rotular as pessoas indelevelmente.
O final desta história fica para outra ocasião.
Dou-me o direito de encerrá-la por aqui, mesmo sabendo que talvez eu esteja soando um tanto evasivo.
Basta dizer que uma situação como a que ele passou é a das mais traumáticas na vida de um professor.
Não se pode ser humano e sair dela indiferente, é o que eu acho, é o que sinto.
Vivo em um país violento, em um estado violento, em uma cidade violenta; trabalho em um bairro violento, em uma rua violenta com um grande número de escolas nos arredores.
Eu não posso me acostumar com a violência, ainda que sabendo que situações de risco não têm hora nem momento para ocorrerem.
Não as naturalizo, apenas as reconheço como exemplos de um estado anormal das coisas, algo que precisa ser mudado urgentemente.
E tem mais: algo que pode ser mudado.
Enfim não há justificativas nem respostas fáceis. Apenas a sensação de ausência, de impotência, com a qual também não me acostumo.
Eu sou um inconformado.
E o mundo de fora da escola às vezes entra pelas frestas das janelas.