É o bem contra o mal. E você de que lado está?

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Por Wilton Moreira, em Jornal GGN – 

O fascista fala o tempo todo em corrupção. Fez isso na Itália em 1922, na Alemanha em 1933, no Brasil em 1964. Ele acusa, insulta, agride, como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso comum, um sociopata que faz carreira na política. No poder, essa direita não hesita em torturar, estuprar e roubar sua carteira, sua liberdade e seus direitos. Mais do que a corrupção, o fascista pratica a maldade. (Norberto Bobbio)

O título deste artigo é um verso de uma canção da Legião Urbana, chamada “1965 (Duas tribos)”, que coloca o regime de 64 e seus apoiadores do lado do mal e pergunta: de que lado você está?




Gosto da Legião Urbana, passei a juventude acompanhando cada disco lançado pela banda e tenho com ela uma ligação afetiva. Depois de adulto, ainda considero Renato Russo um dos melhores letristas que o Brasil produziu, porém, tenho algumas ressalvas a suas canções. Uma delas é que muitas vezes descambam para um maniqueísmo ingênuo.

Pessoalmente, não gosto de posições maniqueístas, pois o mundo, em geral, não se resume na luta do bem contra o mal. Felizmente ou não, nós, humanos, somos moralmente complicados e turvos demais para sermos classificados simplesmente como bons ou maus.

Mas nesta canção em particular, como não dar razão a Renato Russo? A ditadura militar não tolerava críticas, nem mesmo opiniões ou comportamentos desviantes, exilava, torturava, matava e censurava. A partir do golpe e, principalmente do AI-5, o que se instaurou no poder foi claramente o império do mal.

Há portanto, épocas na história em que o mal se define claramente como tal e conquista o poder, de forma democrática ou não. Os nazistas na Alemanha e os fascistas na Itália na década de 1930; e os regimes militares latino americanos nas décadas de 1960-70 são alguns exemplos desta instauração institucional do mal.

Este parece ser o caso do futuro governo Bolsonaro, de caráter claramente fascistoide. E a moda é mundial, com Trump nos EUA, Duterte nas Filipinas e os governos de extrema direita na Itália, Polônia, Ucrânia e Hungria. Isto sem falar que França, Alemanha e Inglaterra, as mais poderosas nações europeias, andam acossadas por neofascistas e fascistoides de toda espécie, cada vez mais populares entre os eleitores.

Mas Bolsonaro, e todos estes outros, não é fruto exatamente da complexidade da alma e da sociedade humana? Sua eleição foi resultado do desencanto, da raiva e do medo de parcelas importantes da população, que se viu desamparada econômica e moralmente. Bolsonaro se aproveitou do conservadorismo moral e dos ódios antigos de nossa sociedade, como os das classes médias pelos pobres, numa época de crise aguda, se aliou ao “mercado”, aos militares e ao partido do judiciário e chegou ao poder, montado numa eficiente máquina virtual de produção de “fake news”.

Sim, o fenômeno Bolsonaro é de difícil explicação, fruto de uma sociedade que, como todas as outras, é multifacetada, cheia de zonas turvas e não maniqueísta. Mas o resultado deste processo complexo é, do ponto de vista moral, de uma simplicidade brutal e explícita: o governo Bolsonaro representa o mal. Por que?

Do discurso do ódio à prática do mal

Vamos começar pelo óbvio, que todos já sabem. A atuação de Bolsonaro (e de seus filhos) no legislativo foi marcada por uma única obra: o discurso de ódio. Enquanto deputado, o presidente eleito simplesmente não participava, nem como oposição, da vida parlamentar, não elaborou leis importantes, não participava de comissões, não mediava os interesses de sua base eleitoral com os poderes instalados. Sua única forma de se destacar era o discurso de ódio, a intenção de destruição dos direitos das minorias, LGBTs, mulheres, negros e indígenas; a louvação de violência estatal promovida pela ditadura militar, inclusive na sua forma mais perversa e covarde, a tortura; a promoção de um anticomunismo, tão agressivo quanto estúpido que, na verdade, significa a negação de qualquer ideia ou prática progressistas; e a adesão ao tacanho fundamentalismo cristão de pastores neopentecostais, cuja brutalidade, reacionarismo e fanatismo só não são são maiores que seu amor por dinheiro e poder.

O que esperar de quem, em toda sua vida politica, pregou exclusivamente a divisão, o ódio e a destruição? Alguns tentam amenizar a pessoa dizendo que aquilo era loucura calculada, marketing, coisa de político esperto. Um marketing de mais de 20 anos, inclusive numa época em que tal discurso era considerado, pela maioria das pessoas, na melhor das hipóteses, inapropriado? Não, o discurso de Bolsonaro expressa o que ele de fato pensa e é. E, pior, as pessoas que votaram nele não foram enganadas, elas queriam exatamente “isso daí”.

Essa aliança repugnante entre a criatura monstruosa que é Bolsonaro e o inconsciente (nem tão inconsciente assim, após o voto) sombrio das massas ainda será objeto de muita análise. Faz parte da complexidade do processo Bolsonaro, que contrasta com a simplicidade brutal do seu resultado: o governo Bolsonaro será o governo do mal.

Se alguém duvida, basta ver de quem o eleito se cercou em sua campanha e se cerca, agora, na transição: filhos “a cara do pai”, generais linha-dura, Steve Bannon, Paulo Guedes, Malafaia, Edir Macedo, Magno Malta, Lorenzone, Delegado Waldir, Sérgio Moro, Olavo de Carvalho e seus pupilos ministeriais (o chanceler tarja preta e o educador maluquete), a pastora dos humanos direitos antigay, antifeminista, anticomuna, antimaconha e antimacumba, a musa veneno etc. Esperar algo de bom dessa turma é querer colher uva em pé de jiló .

Um governo de fanáticos e ressentidos

Num ótimo texto do GGN, a respeito na nova pastora-ministra Damares, Cíntia Alves observa que o governo Bolsonaro inaugura o “anti-ministério”, quando as pastas se voltam contra seu próprio motivo de ser. A ministra que deveria defender os direitos humanos e as minorias é militante feroz contra eles. O mesmo acontece, observa a repórter, com os titulares do Ministério do Meio Ambiente, da Educação e do Itamarati.

Na verdade, Bolsonaro montou um ministério composto majoritariamente por fanáticos em suas respectivas áreas. Este tipo de gente tem uma visão altamente distorcida da realidade e costuma praticar exatamente o oposto do que o bom senso e os ensinamentos recomendam num determinado campo. O cristianismo, por exemplo, prega o amor, o perdão e a tolerância. O fanático pratica o ódio, a vingança e a intolerância, acreditando seguir estritamente os ensinamentos de Cristo. Tornam-se justiceiros impiedosos e a defesa da ministra-pastora do aumento da pena contra o aborto é um exemplo das maldades que os fanáticos podem cometer.

A eles ainda se junta o fanático Chicago-Boy Paulo Guedes, ressuscitado da década de 90, os anos dourados do neoliberalismo, que crê piamente nas eficácia dos mercados desregulados e no estado mínimo (para os pobres), mesmo depois do desmentido factual e estrondoso de 2008!

Guedes e seus guerreiros neoliberais (entre eles o inabalável Joaquim Levy), a despeito da prova da ineficácia de sua crença econômica, ou talvez por isso mesmo, se aferram com mais força ainda e prometem levar a cabo uma fúria privatista e austericida ainda mais radical que a das gestões Levy e Meirelles. As práticas neoliberais de governo comprovadamente intensificam os problemas do capitalismo, como a concentração de renda, o aumento da miséria e do desemprego, aprofundando o sofrimento da população que, no caso brasileiro já se encontra num grau muito alto.

Há, ainda, os generais linha-dura, ressentidos com os civis e os livros de história que mudaram o nome de sua revolução para golpe de 64 e mostra a ditadura militar como realmente foi: um regime criminoso que censurava, torturava e matava seus opositores. Estão ávidos por reescrever a história recente do país e disciplinar novamente a malemolente sociedade brasileira de sangue ruim, que necessitaria de um firme controle externo para compensar sua ausência de disciplina e preguiça inatas.

Moro e o prazer perverso do justiciamento

Ao bando fanático ainda se junta o superministro Sérgio Moro, que, malgrado sua parcialidade, acredita que a corrupção é de fato o maior mal do país e se crê o justiceiro que porá fim a ela. Sua única visão de justiça é a da punição, de preferência, com altas doses de sadismo.

Moro é o sádico clássico que precisa recobrir sua perversão com o disfarce da justiça. Suas conduções coercitivas e prisões sempre humilhantemente espetaculosas e, principalmente, a tortura psicológica das longas prisões preventivas, estendidas até que a vítima confesse exatamente o que o torturador quer ouvir o mostram cabalmente. A confissão sob tortura dá ao sádico o prazer do controle absoluto, por meio da dor, sobre o corpo e a alma da vítima.

O desespero que se abateu sobre Moro, ainda magistrado, quando Lula foi solto por medida liminar, levando-o a atropelar, de forma desastrada, todas as hierarquias e etiquetas do cargo, para manter sua vítima principal sob seu controle, desnudou publicamente a perversão de sua personalidade, dominada pelo sadismo, que não aceita nunca que sua vítima saia minimamente de seu controle.

Que Moro seja um sádico, não é novidade no meio judiciário que, ao lado das polícias, costuma atrair tais tipos, ávidos pelo exercício da violência, física ou psíquica, encobertos pelo manto da legalidade. O que deve preocupar é como o superministro encontra ressonância e aprovação em grandes parcelas da população, que reage aos problemas da criminalidade comum e da corrupção política de forma sádica.

Moro e a população amedontrada têm um vínculo inconsciente sob a aparência de indignação com a injustiça: nas profundezas da alma, o povo e o justiceiro desejam uma vingança perversa contra os corruptos e criminosos, o que inclui o prazer com a tortura e a morte lenta e dolorosa. Querem transformar os supostos meliantes em vítimas e fazê-los sofrer, gozando o seu sofrimento. A popularidade de Moro é o sintoma de que uma parcela significativa (talvez a maioria) da população brasileira se encontra num estado psíquico de perversão sádica, em resposta a seus medos e frustrações.

Os ressentidos no poder

Se há algo perigoso é o ressentimento chegar ao poder. Esse é o caso, por exemplo de Hitler, pessoalmente fracassado e motivo de chacota da elite política alemã. O ressentido, ao chegar ao poder, é acometido por uma fúria vingativa e destruidora que, se encontrar respaldo popular, só poderá ser revertida com violência Aliás, uma das características psicológicas do fascismo é o ressentimento.

Pois o novo governo terá, em seus quadros, um bando de ressentidos, a começar pelo capitão da nave do caos, Jair Bolsonaro, o deputado burro, grosseiro e folclórico, motivo de chacotas entre seus pares, na imprensa e no meio intelectual. Seu desdém pela política, imprensa e seu anti-intelectualismo orgulhoso, sempre expresso de forma agressiva, mostram o seu ressentimento para com os que, antes, desdenhavam-no como um bufão insignificante, que de fato era.

Novamente, o perigo é que este ressentimento parece ser também o do “homem comum”, frustrado e amargurado com os políticos (à esquerda e à direita), a mídia e os especialistas que detêm o poder da Nova República e se comportam como sábios superiores, mas cuja atuação tem causado apenas sofrimento aos “homens inferiores” da ralé. A simplicidade alegre de Lula ecoava a bonomia despojada e despachada do brasileiro comum, esperançoso, apesar das durezas de sua existência. Em contrapartida, a agressividade de Bolsonaro ressoa o lado sombrio desse mesmo homem comum, atormentado pelo complexo de inferioridade (o espírito vira-latas tão bem evocado por Lula) que, nesse momento de crise, emerge embebido em rancor, ódio e desejo de vingança.

Neste aspecto, a crucificação de Lula se faz simbolicamente necessária, pois para o homem do ressentimento emergir, é preciso “matar” psiquicamente o homem da esperança. O apoio e o gozo de grande parte das massas com prisão de Lula no mundo concreto é simbolizado, na esfera psíquica, como a morte do amor que prepara a emergência do ódio, como afeto condutor da sociedade. Bolsonaro, pai castrador e tirânico, é a contraparte sombria de Lula, pai castrado e acolhedor.

Os pastores são outro grupo que chega ao poder representando mais uma legião de ressentidos, os evangélicos. Estes têm sido, ao longo de décadas, motivo de chacota pelos que não partilham de sua fé, inclusive os católicos. Quando não são motivo de risos, costumam ser duramente criticados (e com razão) por suas posições obscurantistas e preconceituosas em relação à ciência, ao homossexualismo, às drogas, ao aborto, à mulher, às religiões de matriz afro-indígenas e sua negação do estado laico. A chegada ao poder dos evangélicos trás consigo toda esta carga de ressentimentos e a fúria evangelizadora da pastora-ministra Damares mostra que estão dispostos a acertar as contas com os ímpios que os humilhavam.

Outro grupo de ressentidos são os idiotas envaidecidos, de quem já tratei em outro artigo e se compõe de Olavo de Carvalho e seus amigos/seguidores, como Eduardo Bolsonaro, o ministro a educação maluquete e o chanceler tarja preta. Mas esta burrice envaidecida dos olavianos se irradia para uma massa de intelectualoides de extrema direita, estilo MBL, que tem exercido considerável influência nas classes médias, notadamente em sua juventude que cursa o ensino médio e superior em escolas privadas, que privilegiam o conhecimento conteudístico e uma racionalidade instrumental, voltados à preparação para o mercado. O pensamento olaviano-emebelista tem o condão de justificar ideologicamente esta educação acrítica e refratária à historicidade.

Ridicularizados por suas teorias malucas, fruto de incapacidade intelectual e fundamentalismo religioso, estes “sábios” se imbuem de um ativismo fanático para compensar a fragilidade de seu pensamento. Suas ideias, ou melhor, a falta delas, ao serem postas em prática, com a fúria dos ressentidos, têm o potencial de causar estragos terríveis ao país. O alinhamento incondicional aos EUA e a sandice do Escola sem Partido são dois exemplos do mal que podem provocar.

As duas tribos estão postas novamente. Resta-nos escolher

Ódio, perversão sádica, ressentimento, fanatismo, intolerância e idiotice são os atributos afetivos e intelectuais do novo governo que se aproxima. São características pessoais de Bolsonaro e seus ministros, conselheiros e políticos mais próximos. Mas o preocupante é que tais atributos parecem estar em sintonia com o estado psíquico das massas, desiludidas e frustradas com a situação social e econômica do país.

Os rendimentos caem, a precarização generalizada avança até as classes médias e o desemprego se torna uma ameaça real. Os sonhos de inserção social via consumo se esvaem, a pobreza e a miséria se alargam, a desigualdade e a criminalidade explodem. As grandes e médias cidades se tornam um inferno na terra. A causa de tudo isso é o capitalismo em crise, que se torna ainda mais injusto com as políticas de austericídio neoliberais,implementadas desde o infame Joaquim Levy.

Mas a população não pode ver sua própria cultura (o capitalismo) como causa de seus problemas. Bolsonaro, com seu discurso de ódio e ressentimento, soube canalizar a frustração popular contra inimigos inventados, como os corruptos, os vermelhos, os “perversores sexuais” e as feministas. Seu governo se anuncia como vingativo, furioso e desagregador. O que seria tal governo, senão o império do mal?

Talvez possamos perdoar a grande maioria da população, sempre mal informada e atribulada em seu duro cotidiano, por sua opção semi-inconsciente pelo ódio, fruto do desespero e do medo. Já os homens de mercado, os jornalistas da grande mídia, os doutores do judiciário e os políticos de centro-direita se aproximam do novo governo em busca dos privilégios proporcionados pela cercania do poder. Estes sabem exatamente com o que estão lidando e têm plenas condições de fazer outras escolhas, por isso são imperdoáveis.

É o bem contra o mal. Este se configura claramente como mal no futuro governo Bolsonaro. Quem lutará contra ele, do lado do bem, não são pessoas santas ou eticamente irrepreensíveis, mas os humanos moralmente turvos de sempre que, malgrado suas imperfeições, não aceitam o ódio e o ressentimento como forma de governo, visão de mundo ou modo de vida. As duas tribos estão formadas. E você, de que lado está?

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