Por Bruno Trezena, compartilhado de Jornalistas Livres –
Para Alexandre Santini, que atuou no Ministério da Cultura ao lado de Juca Ferreira, editais ferem o princípio da impessoalidade; Carol Proner defende recurso à Justiça
A reação ao anúncio do Prêmio Nacional das Artes, feito pelo ex-secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro Roberto Alvim movimentou toda a sociedade brasileira. Com gestos e tons teatrais e que evocavam o pesadelo nazista, o vídeo sobre editais de fomento à Cultura fez com que Roberto Alvim encerrasse sua rápida passagem pela pasta de forma medíocre e vergonhosa.
Contudo, os editais ainda estão no radar do Governo para serem implementados. E os perigos destes editais, que apontam para uma lógica em que o Estado ditará o que é Cultura no país, são o objeto da entrevista com Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, além de ex-diretor de cidadania e diversidade cultural do ministério da Cultura na gestão de Juca Ferreira (Governo Dilma), e Carol Proner, jurista, professora, escritora e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Confira:
Bruno Trezena: Como foi a repercussão do vídeo de Alvim no setor cultural?
Alexandre Santini: O vídeo é estarrecedor. O [agora ex] Secretário Especial de Cultura Roberto Alvim criou uma performance macabra, com tom, estética e conteúdo de inspiração nazista, que chocou não só o setor cultural mas a sociedade brasileira como um todo, que felizmente reagiu à altura da gravidade do episódio, em uma onda de repúdio generalizada que levou à demissão sumária de Alvim em poucas horas.
Mas o aparente desfecho não elimina a gravidade do vídeo, que ficará como um registro, um testemunho histórico do que é o pensamento e a visão de mundo que inspira o bolsonarismo e sua ação no campo da cultura. Alvim é, ou foi, diretor de Teatro, e certamente pensou na dramaturgia e encenação daquele pronunciamento, ladeado por uma cruz templária e pela bandeira nacional, a trilha sonora de Wagner, a fala lenta e compassiva, a paráfrase e por fim a citação textual do discurso de Joseph Goebbels. Em sua última performance institucional, Roberto Alvim cometeu um suicídio semiótico, ateando fogo em si mesmo como seus ídolos e mártires católicos, e sai da vida (pública) pela porta dos fundos da história.
Bruno Trezena: E os editais? O que deve acontecer com eles?
Alexandre Santini: É preciso que sejam cancelados. O próprio anúncio de um edital voltado a uma “arte conservadora” já fere o princípio da impessoalidade administrativa, já configura uma ilegalidade. Não cabe ao governo interferir no sentido do pensamento e da criação. Em nenhum momento dos últimos 30 anos de experiência democrática no Brasil isso aconteceu. É preciso que, além da demissão, os atos de ofício do ex-secretário especial de Cultura sejam cancelados, entre eles editais e nomeações. E Alvim deveria ainda responder perante a Justiça por apologia ao nazismo.
Bruno Trezena: Como foi sua experiência no MINC e a diferença deste Governo?
Alexandre Santini: Há um abismo entre as duas experiências e momentos históricos. O abismo em que o Brasil cai quando elege Bolsonaro. Cai a visão antropológica de Cultura, as três dimensões —simbólica, econômica e cidadã— das políticas culturais que influenciaram as políticas públicas no Brasil e no mundo a partir das bases estabelecidas pelos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, durante os governos Lula. Foram quase 2 décadas de grande desenvolvimento cultural no Brasil, seja na área da cidadania e da diversidade cultural, seja em áreas de forte impacto econômico como o cinema e o audiovisual. A extinção do Ministério da Cultura no governo Bolsonaro já fala por si. Em apenas um ano, a Secretaria Especial de Cultura já esteve no Ministério da Cidadania, agora está no Turismo e especula-se que pode ir para o Ministério da Família. Iremos para o terceiro Secretário Especial de Cultura em um ano. Além da falta de gestão e competência técnica dos novos dirigentes nomeados, predominam pensamentos obscurantistas e grotescos, como vimos recentemente em manifestações dos presidentes da Funarte, da Fundação Palmares (também exonerado) e da Casa de Rui Barbosa. O governo Bolsonaro é um desastre para o setor cultural brasileiro.
Bruno Trezena: Como combater esses ataques na Cultura por parte do Governo?
Alexandre Santini: A sociedade tem reagido fortemente a estes episódios, levando o governo a recuos e derrotas pontuais como esta. A sociedade civil organizada, as instituições, artistas, movimentos e coletivos se posicionam e têm capacidade de polarizar a opinião pública. Enquanto isso o povo segue sendo vilipendiado em seus direitos sociais, vide o caso na fila do INSS. Não são coisas isoladas, é tudo parte de um mesmo projeto.
As políticas culturais têm resistido, especialmente em âmbito local, em cidades e estados comprometidos com os avanços do setor cultural brasileiro nas últimas décadas. Experiências como a de Niterói, que hoje investe fortemente na cultura através de editais e fomenta a participação popular e descentralização dos equipamentos culturais; experiências importantes em cidades e estados do nordeste; a prefeitura de São Paulo está fazendo uma programação com espetáculos que sofreram boicotes ou cancelamentos em espaços e programas do governo federal. Há reação e vigilância por parte do setor cultural. Mas a demissão do Secretário Especial de Cultura não encerra o problema, ao contrário.
Quem coloca uma pessoa como Roberto Alvim neste cargo tinha noção de quem ele era e do que pensava. Seu posicionamento era conhecido antes de chegar à pasta. Ele estava lá por pensar essas coisas e não o contrário. E só saiu porque a repugnância ao seu pronunciamento foi praticamente unânime. Um presidente que homenageia um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra não deve achar nada de mais nas diatribes do garoto Roberto Alvim. Só que dessa vez ele exagerou na dose, até para alguém como Bolsonaro. A sua loucura tem um método, e não reconhece limites. Quem lhe impõe limites (ainda) é a democracia e seu sistema de freios e contrapesos, as instituições, a sociedade civil organizada. Estamos de pé!
Bruno Trezena: Os editais anunciados por Alvim apresentam inconstitucionalidades?
Carol Proner: Não conhecemos a redação dos editais e, portanto, não dá pra saber com exatidão ainda. Fica a grande questão se o edital viola o princípio da impessoalidade ou se é um espelho do discurso feito pelo ex-secretário Roberto Alvim. De qualquer forma, é complicado imaginar que aquele que é responsável pelo edital possa fazer um anúncio com as finalidades do edital com aquele conteúdo propagado pelo vídeo. É praxe que todo Governo possa fomentar a arte e Cultura de seu país, desde que seja observado o princípio da impessoalidade. Sem sectarismo.
Bruno Trezena: Como a sociedade e as organizações podem reagir juridicamente?
Carol Proner: O MPF já foi acionado por advogados, a ABJD já se pronunciou, repudiando as palavras do ex-secretário, a OAB, a Confederação Israelita também repudiou, visto que o discurso plagiava palavras do ministro nazista alemão Joseph Goebbels. Houve reação de muitas entidades jurídicas. Ministros do Supremo também se manifestaram, como o presidente Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
Todos têm que ver o edital para ver se reproduz o discurso absurdo do ex-secretário. E todos e todas que se sentiram ofendidos pelo discurso devem recorrer à Justiça também. Apologia ao ódio, contra direitos humanos, contra a humanidade (no caso, o Holocausto) devem ser combatidos. Não se pode aceitar passivamente isso tudo.