Por Drauzio Varella, médico, compartilhado UOL
Depois do que a Saúde sofreu nos últimos quatro anos vamos retroceder dessa forma humilhante?
Semana passada, passei quatro dias gravando o atendimento médico que a ONG Zoé presta aos habitantes das margens dos rios Tapajós, Guarapiuns e Amazonas.
Sair da correria infernal de São Paulo e cair no mundo silencioso dos ribeirinhos, gente simples que vive em contato íntimo com a natureza, devolve a paz que a cidade grande teima em nos negar. O Tapajós é um rio imenso, que chega a ter 18 km de largura, o Amazonas, nem se fala. Que geografia generosa a nossa.
Estava nesse estado contemplativo quando tive a infelicidade de receber um sinal de internet. Maldita hora.
Os jornalistas comentavam a notícia de que o assim denominado centrão pressionava o presidente para derrubar a ministra Nísia Trindade, com a intenção de entregar o comando do Ministério da Saúde aos deputados que compõem esse grupo.
Se possível “de porteira fechada”, termo grosseiro que empregam quando pretendem preencher com apadrinhados todos os cargos com acesso às verbas governamentais.
Parecia um pesadelo: depois dos atentados criminosos que a Saúde sofreu nos últimos quatro anos, vamos retroceder dessa forma humilhante?
Justamente quando nos enchíamos de esperança de que uma profissional respeitada pelos que atuam na área iria organizar a reconstrução do ministério arrasado pela incompetência administrativa, pela estupidez e pelos desmandos de gente prepotente e despreparada para conduzi-lo?
O SUS é o maior programa de saúde pública do mundo. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou oferecer assistência médica a todos os habitantes. Em pouco mais de 30 anos, fizemos a maior revolução na história da saúde pública brasileira.
O que mais me dói quando vejo o mau gerenciamento do sistema, a falta de financiamento, as interferências políticas da pior espécie, a roubalheira desavergonhada e o desinteresse daqueles que contam com os planos de saúde, é que o SUS dispõe de tudo o que é necessário para funcionar bem.
Não há que inventar nada. Está tudo aí: o programa Estratégia Saúde da Família, em que os agentes batem de porta em porta, mais de 42 mil Unidades Básicas de Saúde, os pequenos hospitais dos municípios para os atendimentos rotineiros, os regionais para os casos mais graves e os hospitais terciários para os procedimentos de alta complexidade, além de programas nacionais como os de imunizações, transplantes de órgãos, hemodiálises, medicamentos de alto custo, o resgate e tantos outros elogiados mundo afora.
O que nos falta são recursos financeiros mínimos, gerenciamento e uma política de saúde pública digna desse nome.
Anos atrás escrevi neste espaço que, apenas no período de 2008 a 2018, o país teve 13 ministros da Saúde. A média de permanência no cargo foi de dez meses. O que dá para construir em período tão curto? Quando eles começam a entender os problemas enfrentados nas grandes cidades e no Brasil profundo, são trocados por outros.
E, pior: não são substituídos por sanitaristas mais competentes, mas por políticos carreiristas que asseguram aos governos maioria no Parlamento.
Por esse caminho, já tivemos ministros sabidamente corruptos, outros eram ignorantes, alheios às dificuldades de acesso à saúde que atormentam o dia a dia dos mais pobres. Um deles confessou não ter ideia do que era o SUS, uma vez que sempre foi atendido em hospitais militares.
O que leva um cidadão a aceitar um cargo nessas condições? Não seria o mesmo que eu aceitar o convite para ser comandante das Forças Armadas sem nunca ter entrado num quartel?
Os desmandos que ocorrem na esfera federal se repetem nos estados e nos municípios.
Quem anda pelo Brasil é testemunha da incompetência dos gestores, das interferências de políticos da pior espécie, dos roubos e dos desmandos que castigam os usuários do SUS.
E enxerga a diferença abissal existente nas cidades em que o secretário municipal e o prefeito são comprometidos com o atendimento à população.
Reconstruir o SUS exigirá trabalho árduo e anos de dedicação dos melhores especialistas em saúde pública.
E estes felizmente existem, embora tenham sido afastados ou rebaixados para posições subalternas, chefiadas por gente com interesses duvidosos e nenhum compromisso com a saúde dos brasileiros.