por Arnaldo Cardoso, compartilhado de GGN –
O mercado editorial mundial há anos vem implementando medidas de reestruturação de sua cadeia produtiva, especialmente em função dos impactos das tecnologias digitais.
“Um livro deve ser o machado que rompe o mar congelado dentro de nós”. (Franz Kafka)
Sob diferentes graus de rigor de distanciamento social para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, populações em diferentes partes do mundo encontraram nos livros, filmes e séries em plataformas de streaming as principais formas de entretenimento, conhecimento e reflexão.
Com livrarias e bibliotecas fechadas por meses, como foi o caso da Itália – primeiro país europeu a enfrentar as formas mais agudas da emergência sanitária –, também editoras e autore(a)s tiveram suas atividades paralisadas, projetos cancelados ou adiados e precisaram encontrar saídas.
O mercado editorial mundial há anos vem implementando medidas de reestruturação de sua cadeia produtiva, especialmente em função dos impactos das tecnologias digitais. No Brasil o fechamento de muitas livrarias físicas, endividamento de grupos editoriais e fusões e aquisições no setor já eram frequentes nos noticiários e produziam apreensão entre analistas e profissionais da educação e da cultura. A cada crise o resultado principal é maior oligopolização do setor e precarização de vínculos. A pandemia terminou por acelerar e intensificar processos e tornar mais prementes, para muitos, a busca por caminhos alternativos.
Pesquisa divulgada em janeiro de 2021 realizada pela CBL, SNEL e Nielsen Book mostrou que em 2020 o mercado editorial brasileiro vendeu 354 milhões de exemplares e faturou R$ 5,17 bilhões registrando queda nominal de 8,8% em relação a 2019. Foram impressos 314 milhões de exemplares. Dos 46 mil títulos editados – 17,4% a menos que no ano anterior – 11.295 foram lançamentos.
Sobre os principais canais de distribuição as livrarias físicas corresponderam em 2020 a 30,3% das vendas, no ano anterior foram 41,6%. As livrarias exclusivamente virtuais representaram 24,8% em 2020, no ano anterior 12,7%. O canal internet/market place em 2020 representou 8,1%, no ano anterior 5,2%. O crescimento da participação de livrarias exclusivamente virtuais no faturamento das editoras no Brasil foi de 84%. Coisa similar também aconteceu em outros países.
O processo de concentração do mercado editorial nas mãos de grandes grupos editoriais cada vez mais integrados com gigantes corporações logísticas, como a Amazon, teve na pandemia o seu aprofundamento, mas também tem havido resistências.
Enfrentando gigantes
Depois de um e-mail da Amazon pressionando seus fornecedores de livros por mais descontos, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) enviou aos seus 550 associados o documento “Por um ambiente saudável nos negócios”, datado de 29 de março passado, abordando as práticas comerciais criadas ou intensificadas em decorrência da pandemia do coronavírus.
O documento afirma que uma política de descontos excessivos que chegam a 70% do valor de capa, “afeta drasticamente as margens de lucro das editoras e livrarias, que acompanham a depreciação de valor comercial e cultural de seus produtos, o que, em última análise, enfraquece a bibliodiversidade brasileira. O aumento da variedade de títulos circulando na sociedade e a ampliação dos índices de leitura no país são bandeiras perenes e prioritárias em nossos posicionamentos nos âmbitos político, social e econômico”.
As independentes demarcam seu espaço
Concomitante às ações de resistência à lógica comercial dos grandes grupos editoriais e gigantes de logística, o setor livreiro no Brasil e em outros países vem registrando um animador desempenho de pequenas e médias editoras independentes que se pautam pela valorização de novos talentos nacionais ou traduções de autores internacionais pouco conhecidos. Vendas através do site da editora, oferecimento de frete grátis e o uso de divulgadores digitais literários tem composto as estratégias dessas editoras. Tiragens menores reduzindo o investimento inicial para lançamentos e a aposta no canal B2C (Business to Consumer) vendendo direto aos leitores tem trazido ótimos resultados.
A Livraria Gato sem Rabo e o universo diverso de leitorxs
Também merecem destaque as iniciativas sensíveis às demandas que o mercado despreza por não atenderem a necessidade de escala das grandes estruturas comerciais. A recente abertura em São Paulo da Livraria Gato sem Rabo – nome tirado de “Um Quarto Só Seu”, de Virginia Woolf – privilegiará em seu acervo “os escritos de mulheres e os cruzamentos que essa definição abrange” como conta a proprietária Johana Stein. A livraria objetiva dar visibilidade a “um olhar a partir dessas outras perspectivas: de mulheres, corpos dissidentes, não binários, do Sul global, principalmente”.
Ampliando o olhar
Em um mundo cada vez mais interligado e interdependente (ainda que assimetricamente) em que o capital opera em escala global, uma compreensão dos processos demanda também um olhar ampliado, reconhecendo similaridades e diferenças em outros lugares, para assim adensar formas de resistência e a solidariedade.
E no mercado editorial italiano, como os ventos estão soprando?
Em 2020 o mercado editorial italiano registrou um crescimento de 2,4% em relação a 2019, atingindo 104,5 milhões de exemplares e 1,54 bilhões de euros de vendas, incluindo nesses números o crescimento de 37% de e-books e 94% de audiolivros. O primeiro semestre do ano acumulou números ruins mas a recuperação veio no segundo semestre com um maior controle da pandemia.
Em 2020 o mercado online de livros na Itália representou 43% das vendas.
Também no país da bota o mercado editorial é dominado por grandes grupos como a Mondadori, Einaudi e outros, que terminam por restringir os espaços para a manifestação de novos talentos. Mas por lá também há resistências e conquistas por parte dos independentes.
A TerraRossa de Giovanni
Entre os casos que merecem destaque está o da pequena editora TerraRossa, de propriedade de Giovanni Turi, que opera a partir da cidade de Bari, mais precisamente da simpática comuna de Alberobello. Giovanni é licenciado em Literatura e acumula também expertise em turismo. Conta que desde muito jovem nutria o desejo de ser editor.
A editora TerraRossa foi criada em 2016 e acumula em seu catálogo 18 títulos; sua agenda editorial já está comprometida até setembro de 2023. Giovanni conta com a colaboração de uma equipe composta por Elena Manzari, Francesco Dezio, Tiziana Giudice e Stefano Savella.
Seus dois mais recentes sucessos são: “Fifty-Fifty” um romance irreverente avesso à preconceitos, escrito pelo milanês Ezio Sinigaglia, que desde seu lançamento acumula elogios da crítica e de leitores e “La Casa delle Madri” de Daniele Petruccioli, um romance denso e visceral que ficou entre os 12 finalistas do prestigioso Prêmio Strega de 2021.
Em uma entrevista iniciada no dia anterior ao da viagem de Giovanni para a cerimônia de anúncio das finalistas do prêmio que seria realizada no Teatro Romano de Benevento, o jovem editor compartilhou experiências na condução da TerraRossa, suas percepções sobre a importância da literatura, sobre o mercado editorial italiano e alguns de seus projetos e sonhos.
Os principais trechos da entrevista com Giovanni Turi.
Quando perguntei a Giovanni se há traços comuns entre os títulos já publicados pela sua editora ele respondeu “Sim, o valor da escrita; cada um de nossos autores tem uma voz reconhecível e a capacidade de colocá-la a serviço da história que está sendo contada”. Sobre o público ideal para os livros da sua editora ele diz apostar “em leitores dispostos a sair da sua ‘zona de conforto’, a aceitar os desafios de textos excêntricos e escritores que ainda acreditam na capacidade da literatura de se renovar e de renovar o olhar das pessoas sobre o mundo”.
Sobre a importância da seleção do livro de Daniele Petruccioli entre os doze finalistas do Prêmio Strega, Giovanni avaliou que “Poucos prêmios são capazes de mudar o destino de um texto e, entre eles, na Itália, o Prêmio Strega é certamente o principal, pelo qual agradecemos a Elena Stancanelli que o propôs ao comitê da Fundação Bellonci”.
Perguntei-lhe sobre as principais dificuldades para uma editora pequena se fazer presente em um mercado editorial liderado por grandes empresas como as editoras Mondadori e Einaudi, e ele respondeu “Mondadori e Einaudi pertencem ao mesmo grupo editorial que também gere (e não só) a principal distribuidora italiana de livros; para as pequenas marcas significa estar sempre à margem, tendo dificuldade em distribuir e divulgar as suas publicações, assim como poder operar em plena liberdade”.
Citando a fala recente do jornalista e escritor italiano Roberto Saviano “il lettore è un soggetto pericoloso. Abbatte i muri, apre le sbarre delle carceri. Dà fastidio ai potenti più di chi scrive” (O leitor é um sujeito perigoso. Ele derruba os muros, abre as grades da prisão. Isso incomoda os poderosos mais do que quem escreve) Giovanni comentou “Parece-me muito otimista; vários leitores se limitam a aceitar passivamente a visão que lhes é proposta, a seguir as modas literárias que agradam ao status quo. Mas também é verdade que quem lê tem mais oportunidades de se questionar e de alargar o seu horizonte; depende dos livros que passam pelas suas mãos e da forma como os lê”.
Mencionando pesquisas que mostram uma queda na média de livros lidos anualmente pelos jovens italianos e, ao mesmo tempo, o aumento do número de horas em que os jovens ficam diariamente em redes sociais e aplicativos de internet como o Instagram e Tik Tok (um bombardeio de imagens e não de textos) e de “influenciadores” digitais que tem milhões de seguidores, Giovanni Turi não se mostrou adepto das visões mais pessimistas e salientou a importância de manter a crença de que “os livros podem ajudar a todos se tornarem pessoas mais ricas e conscientes e que isso também pode ser promovido através das redes sociais”.
Indagando-o sobre como entende as relações entre literatura, arte e política, Giovanni definiu-as como “muito estreitas” e completou “acredito que a literatura e a arte transmitem uma ideia que é sempre um tanto política, mesmo quando parece que não tem nada a ver com política; mas também acredito que a literatura e a arte nunca deveriam se preocupar em fazer política diretamente, para não perder sua especificidade e sua liberdade”.
Sobre a tradução e lançamento de títulos da TerraRossa em outros idiomas ele contou que “Vários editores estrangeiros se interessaram pelos nossos títulos, mas por enquanto apenas dois projetos de tradução estão em andamento sobre um de nossos livros, “La meravigliosa lampada di Paolo Lunare” de Cristò: eles compraram os direitos das Edições Le Soupirail para a França e Bélgica e Edicola Ediciones para o Chile e Argentina”.
Finalizando a entrevista perguntei a Giovanni sobre planos para a editora e pessoais e ouvi que a trajetória exitosa do livro “La Casa delle Madri” teve um efeito estimulante para ele e equipe que trabalha na TerraRossa e que muitos projetos poderão adquirir novo impulso. Revelou também que considera a possibilidade de uma sociedade ou negociação dos direitos da editora desde que lhe seja permitido “continuar a perseguir minha ideia de literatura de forma independente”.