Por Helvídio Mattos, compartilhado de Ultrajano –
Como o maior documentarista brasileiro me deu uma lição sobre entender as lembranças de quem tem um passado rico para contar
Em dois sábados de fevereiro de 2019 participei de um breve curso na livraria, biblioteca e espaço cultural Tapera Taperá na Galeria Metrópole, Centro de São Paulo.
O tema era a obra do cineasta diretor de preciosidades como Cabra marcado para morrer, Santo forte, Edifício Master, Peões, Jogo de cena e As canções.
O curso de cinco horas em cada sábado, intitulado como Eduardo Coutinho e a verdade da filmagem, me abriu caminhos para conhecer mais e melhor sobre seu método de trabalho e especialmente a arte da entrevista.
No primeiro sábado, o escritor, psicanalista e crítico de cinema e literatura Ricardo Davito exibiu o documentário que Carlos Nader dirigiu tendo como base uma entrevista gravada com Coutinho e ilustrada com cenas de filmes do documentarista.
A lição que recebi de Eduardo Coutinho nasceu nesse primeiro dia de curso. Ele, que se estivesse vivo faria 88 anos neste 11 de maio, falava para a câmera de Carlos Neder sobre as lembranças de vida contadas por seus entrevistados, que por vezes não pareciam ser exatamente a expressão da verdade. Não que eles estivessem mentindo, é que… [aí vem a lição] “o passado contado é mais intenso que o passado vivido”.
A frase de Eduardo Coutinho me pegou em cheio. Lembrei-me do Grandes Momentos do Esporte e das entrevistas que fazia com ex-jogadores. De Pelé a Zé Ruela, não havia um que contasse seus momentos de glória e passagens marcantes da carreira com um pouquinho mais de ênfase ou com enredo diferente daquele que tinha realmente acontecido.
A diferença entre verdade e ficção acabava atrapalhando na hora de editar a reportagem. Muitas vezes aconteceu de a imagem de certo gol marcado pelo entrevistado não bater com a lembrança que ele mesmo tinha descrito.
A melhor história que tenho sobre o passado contado ser mais intenso que o passado vivido é a de Conceição Geremias, atleta com participação em três Olimpíadas e medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Caracas em 1983.
Conceição era craque no heptatlo, modalidade que em dois dias reúne as provas de 100 metros com barreiras, salto em altura, arremesso de peso, 200 metros, salto em distância, lançamento de dardo e 800 metros.
Nos Jogos de Caracas, na soma dos pontos que conquistou nas sete provas, a atleta campineira alcançou a marca de 6.017, recorde sul-americano, que durou 25 anos até ser batido por Lucimara Silvestre nos Jogos Olímpicos de Pequim.
Em entrevista que fiz na sua casa em Campinas, Conceição contou com detalhes a vitória épica em Caracas, após duelo intenso com a rival estadunidense.
Na prova que fecha o heptatlo, os 800 metros, Conceição entrou com vantagem de pontos sobre a outra atleta, precisava chegar em segundo lugar para conquistar a medalha. Mesmo assim, contou ela, se esforçou ao máximo para superar a adversária e vencer a prova nos últimos metros. Foi assim que se tornou campeã pan-americana e medalhista de ouro.
Claro, fiquei encantado com o relato de Conceição. Imaginava já como seria a edição ao adicionar as imagens da chegada da prova com a fala dela.
No dia seguinte, na redação da ESPN Brasil, pedi para o Arquivo as tais imagens. O que vi na tela não era bem aquilo que tinha ouvido. E agora?
Conversei com Roberto Salim, falei com Marcelo Gomes e decidi dar preferência às lembranças de Conceição Geremias.
Preservei sua fala e editei as imagens de arquivo sem deixar que uma contrastasse com a outra.
Apenas segui a lição de Eduardo Coutinho, mesmo sem saber em 2012 que o passado contado é mais intenso que o passado vivido.