Por meio de extensa pesquisa em documentos e entrevistas com mais de cem pessoas, a jornalista e escritora Luiza Villaméa resgata o dia a dia das presas políticas entre 1969 e 1973. Muitas delas integravam posições em grupos clandestinos que defendiam a luta armada como reação à ditadura militar.
Compartilhado da Revista PB
Desativado em 1973 e, posteriormente, demolido para a construção da Linha Norte–Sul do metrô paulistano, o presídio Tiradentes se resume a fotos amareladas e um portal de pedra, na avenida do mesmo nome, tombado pela Prefeitura de São Paulo como memória de um período de arbítrio, violência e sofrimento. Durante os anos 1969 e 1973, pelo menos 132 mulheres passaram sob o portal, percorreram corredores úmidos e imundos e ficaram confinadas em seis celas em uma ala denominada Torre das Donzelas (ou, simplesmente, Torre), uma cúpula redonda encravada em um dos pavilhões do imóvel centenário, construído em 1852 — quando era conhecido como Cadeia da Luz (em razão da proximidade com a estação ferroviária do mesmo nome). A partir do golpe de 1964, parte da capacidade foi destinada a receber presos políticos, seja por cumprimento de pena, seja por prisão provisória, após passarem por torturas no DOI-Codi e no Dops, ou apenas por terem alguma espécie de ligação com militantes das principais organizações clandestinas contra o regime militar, como a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Ação Popular (AP), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), entre outras.
A participação feminina no combate à ditadura militar já foi objeto de outras obras, como Mulheres que foram à luta armada (de Luiz Maklouf Carvalho, Editora Globo), mas o toque de sensibilidade em focar nas nuances do dia a dia é o que diferencia o livro A Torre – o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura (Companhia das Letras, 288 páginas). Durante dez anos, a jornalista Luiza Villaméa promoveu extensa pesquisa em milhares de documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp) e do Superior Tribunal Militar (STM), além de realizar entrevistas com mais de cem personagens, entre homens e mulheres, que foram protagonistas de uma das fases mais sombrias da história nacional. “Nada no livro é ficção. Todos os detalhes foram checados e cruzados com as entrevistas e documentos. A mala que eu cito de uma detenta é com todos os detalhes de cor e tamanho, bem como o diâmetro do buraco na parede em uma cela para comunicação com a ala masculina”, diz a autora, com larga experiência na mídia (O Globo, Veja e ISTOÉ) e premiada com os prêmios Esso e Direitos Humanos pelas reportagens. A obra faz parte da coleção Arquivos da Repressão no Brasil, coordenada pela historiadora Heloisa Starling.
O livro, que não obedece a uma ordem cronológica, tem como linha mestra, em seus cinco capítulos, episódios que marcaram a convivência das mulheres na Torre. Entre as que ainda estão vivas, nem todas as detentas quiseram falar, em razão da dor e dos traumas causados pela prisão. Em muitos casos, por se passarem mais de 50 anos, as memórias eram reacendidas quando da exposição de um documento ou um depoimento dado por outra entrevistada. O foco da autora era exatamente apresentar a convivência entre mulheres com origens tão diversas e que não se conheciam, mas tinham um ideal comum de resistência. “Havia um espírito comunitário de se protegerem, muita solidariedade. Algumas chegavam arrebentadas pela tortura nos porões do Dops e do DOI-Codi, outras eram retiradas abruptamente da Torre e levadas para a tortura. Não havia brigas entre elas, apesar das diferentes opiniões quanto às estratégias de luta. Quem tinha uma habilidade, ensinava as demais colegas. Os alimentos que eram levados pelos familiares mais abastados eram divididos entre todas, e não havia uma disputa hierárquica nas tarefas de limpeza e cozinha”, conta a jornalista.
Talvez o clima de harmonia entre as detentas tenha se dado pelo fato de nunca ter havido superlotação nas celas. Ninguém ficou integralmente de 1969 até a demolição. Quando desativado, havia 37 presas na Torre e 155 homens nos pavilhões masculinos. Tanto nas pesquisas como na elaboração do livro, Luiza se preocupou em contar as histórias com base no passado das presas e de como e por que chegaram ao presídio. “O olho no olho foi fundamental. É preciso saber respeitar os silêncios. Você não pode bombardear o entrevistado com perguntas em sequência, precisa respeitar o tempo das pessoas”. A autora não localizou documentos, tampouco encontrou depoimentos sobre tortura nas dependências da Torre, mas as entrevistadas revelaram que ouviam gritos de dor na ala masculina contígua do presídio.
Com exceção da diretora teatral Heleny Guariba, assassinada em um centro de tortura, em Petrópolis, após ser transferida da Torre, todas as mulheres seguiram suas vidas, muitas anonimamente, outras com mais projeção. Foi o caso da fotógrafa Nair Benedicto; da advogada e ativista dos direitos humanos Therezinha Zerbini; da ex-ministra da Secretaria de Políticas Para as Mulheres Eleonora Menicucci; e daquela que viria a se tornar presidente da República muitos anos depois, Dilma Rousseff. Em comum, nenhuma das entrevistadas manifestou arrependimento pelos seus atos. “Admitiram que eram jovens, idealistas e jogaram tudo contra o sistema, mas fariam o mesmo novamente”, afirma Luiza.
Por sua atuação jornalística, a autora já havia entrevistado Dilma em outras oportunidades, enquanto ministra e candidata à Presidência, bem como conhecia pessoas de seu círculo pessoal. Quando a entrevista com a ex-presidente foi realizada, em Porto Alegre, Dilma não se furtou a falar do período em que ficou na Torre, entre março de 1970 e junho de 1972. “Ela tem uma excelente memória, estava descontraída, contou dos apelidos que colocava nas colegas e foi a única que falou sobre os livros de política e economia, que eram proibidos de circular no presídio.” Para burlar a vigilância dos carcereiros, ela, que tinha o apelido de “Mineirão”, e algumas de suas colegas de cela, conhecidas como “Moló” (por ter sido detida com coquetéis Molotov), “Baixa”, “Periquita Laboriosa” e “Fogueira”, escondiam os livros no piso, protegidos por duas tábuas de madeira e devidamente cobertos por plástico para proteger da umidade. Dentre os livros proibidos, estava O Capital (de Karl Marx) e obras do cientista político grego Nicos Poulantzas, crítico do regime soviético.
“Nenhuma entrevistada manifestou arrependimento. Admitiram que eram jovens, idealistas e jogaram tudo contra o sistema, mas fariam o mesmo novamente.”Luiza Villaméa, autora do livro A Torre – o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura
Luiza não encontrou barreiras nas pesquisas, principalmente no STM. “Foram feitas antes de 2019”, ressalta. Contudo, revela que o tensionamento ideológico dos últimos quatros anos pesou nas entrevistas. “O trabalho já estava adiantado na entrada de Jair Bolsonaro, mas algumas pessoas redobraram o interesse em falar.” Procurada pela reportagem da PB, a assessoria de imprensa da Companhia das Letras alegou confidencialidade nas vendas. Por sua vez, a autora diz estar sendo procurada por jovens para lives e por emissoras de televisão educativas para entrevistas. Por ainda não ser conhecida do grande público como escritora, a jornalista admite que o alcance do livro virá de forma lenta e gradativa.