Ele não mora mais aqui

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista, Facebook – 

Subia um trecho mais íngreme de uma das ladeiras do bairro. O abrigo folgado sobre o corpo magérrimo, dançando para a direita e esquerda, acompanhando o movimento das pernas compridas, que modulavam o resto do corpo. Os braços compensando o deslocamento das pernas compridas, daí o movimento do abrigo folgado, como se fosse alguns números maior que o indicado para o corpo dele. Não era o abrigo. Era o corpo magro, enxuto.

Uma garça humana escalando um trecho acentuado de uma das ladeiras do bairro. Meia dúzia de gotas gordas de chuva já haviam explodido contra o para-brisas e se desmanchavam num trajeto curto quando parei ao lado dele e convidei: ─ Entre. A chuva vai ser pesada. Você vai até o ponto de ônibus, não vai? Então entre e te deixo bem ao lado ─. Ele me olhou entre surpreso e agradecido.




As gotas gordas de chuva não poupariam seu corpo magro e o bombardeariam de água gelada. Uma chuva que parecia de verão, mas caia no inverno, com gotas redondas como jabuticabas líquidas, transparentes e geladas.

Ele teria de retornar, trocar as roupas e com isso perderia tempo e todo o esforço que havia despendido para chegar até o ponto em que o alcancei.

Ele respondeu: ─ Obrigado por sua gentileza, eu ia me molhar com esta chuva ─ e eu disse: ─ não me custou nada e, além disso, estamos fazendo o mesmo trajeto.

Ele trazia uma sacola na mão, enrolada como um pequeno bastão, certamente para facilitar os movimentos do corpo magro de uma garça.

Conversamos brevemente, sobre as distâncias nas cidades grandes. Com frequência, também nas médias e pequenas. Não as distâncias físicas, como a que ele vencia escalando as vias tortuosas do bairro, com árvores antigas que costumam ranger à força do vento, quando podem perder galhos deteriorados. E, como já aconteceu mais de uma vez, de desabarem inteiras, como se estivessem fartas e dissessem às suas vizinhas, enfileiradas tortas pela ação do tempo: “ Vou me embora com este vento” ─.

Então atingiram fiação elétrica, cabos de telefone e com isso inviabilizaram a internet, cortando um suprimento vital como o ar a um número crescente de pessoas entre as quais me incluo. Falamos, eu e ele, mais ele que eu, das pequenas delicadezas, como uma carona de uns oitocentos metros sob a chuva que decidira pegar de surpresa gente distraída.

Foi uma interação curta, a única numa convivência de quase duas décadas. Muitas vezes cruzei com ele na avenida, onde ele tomaria o ônibus. Eu vindo e ele indo, em direções contrárias. Ou ele chegando e eu saindo para as infinitas razões que nos fazem sair de casa por motivos que nem remotamente consideramos, ainda que possa estar gravados numa agenda sob a forma de um compromisso qualquer: a barbearia, que agora passou a ser “barber shop”, a livraria, uma reunião de trabalho. Ou todas as vezes que saí para trabalhar numa redação.

Nos últimos dias, não havia visto qualquer sinal dele, escalando as alamedas do bairro ou deslizando com a leveza de patinador pela planura da avenida. Bem, eu fiquei fora alguns dias, fazendo uns trabalhos no campo, engrossando a palma das mãos, mesmo com uso de luvas, mas aliviando a alma que, na Mantiqueira, flutua com a facilidade de uma pipa com os ventos fortes do início do outono.

No café da manhã, há pouco mais de duas horas, li no canto superior do jornal que o diretor de teatro José Alves Antunes Filho não mora mais aqui.

Eu que o encontrei tantas vezes e nunca puxei conversa para não interferir em seu diálogo interior. A não ser aquele dia em que a chuva não perdoaria sua distração de sair de casa sem levantar os olhos para o céu e consultar a disposição das nuvens escuras em permanecerem aladas ou se precipitarem como cachoeira, lavando as ruas do bairro, arrastando folhas, pequenos galhos e tudo mais que estivesse frente ao que Câmara Cascudo chamou de rios temporários num ensaio de fazer inveja a William Shakespeare.

No meu bairro, rios brotam do asfalto duro e seco, à base de pedra e petróleo em minutos, dependendo do humor do céu.

Meu vizinho, Antunes Filho, foi um indignado com quem, só hoje, descobri também uma proximidade de aniversário. Chegamos à Terra com uma mesma disposição do céu, em um aparente eterno retorno. Mas que é só uma aparência. Cada um dos acontecimentos, na realidade, é único e original como ensinou Heráclito ao dizer que ninguém escala a mesma montanha ou se banha duas vezes no mesmo rio.

Tudo, a mínima ocorrência no mundo, é original e jamais voltará a se repetir. No meu caso, nunca mais verei Antunes Filho escalando as ladeiras íngremes do bairro em que compartilhamos, com distância precavida, alguns anos da vida breve que respiramos na Terra.

Foto:Uai

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