Ele temia mais o velho normal que a própria morte

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Por , compartilhado de Outras Palavras – 

Professor, escritor e militante, Marcelo Biar lutou com paixão e criatividade contra o encarceramento e o genocídio dos negros. Perto do fim, deixou em carta o amor pela vida e a lástima de perdê-la. Despediu-se propondo: “tramemos revoluções”

De todos os meus medos, o maior é que isso tudo passe e voltemos ao normal”.

Na madrugada do último sábado, 25 de julho, faleceu de Covid-19, no Rio de Janeiro, o professor de história, escritor e militante de direitos humanos Marcelo Biar. A partir de sua marcante experiência como educador na prisão, tornou-se uma das mais vozes mais destacadas e firmes do Brasil em defesa do desencarceramento e dos direitos dos internos do sistema penitenciário. Em seu relevante livro sobre o tema, “Arquitetura da dominação: o Rio de Janeiro, suas prisões e seus presos” (Revan, 2016), fruto de doutorado em História na UERJ, desvenda como o cárcere vincula-se à criminalização da população negra e das favelas, às nossas desigualdades e sistemas de controle social. Repensa criticamente, por fim, a educação prisional, sobre a qual falava de cátedra: chegou a ser, durante quatro anos, diretor da escola do Complexo Penitenciário de Bangu – onde estão dadas as condições para acontecer a qualquer momento um massacre como o do Carandiru, segundo alertou em um de seus últimos textos, de março.

Fundador e presidente do Instituto por Direitos e Igualdade, Marcelo Biar atuava com familiares de presos e egressos do sistema prisional, construindo denúncias, propostas e ações de defesa concreta de seus direitos. Em abril deste ano, o Instituto obteve do Judiciário uma decisão obrigando o governo do Rio de Janeiro a providenciar, em até três dias, a garantia adequada de materiais de limpeza para as prisões, com produtos de higiene pessoal para os presos e equipamentos de proteção individual para os agentes penitenciários. Em 2018, Biar formulou o Projeto de Lei nº 10.142/2018, apresentado pelo Deputado Federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que propõe garantir aos presos que trabalham os direitos previstos na CLT e a remuneração com salário-mínimo, como qualquer outro trabalhador (segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 75% dos presos envolvidos em atividades laborais em 2016 recebiam salário inferior a três quartos do salário-mínimo).

Militante e dirigente do PSOL-RJ, Biar deixa como legado também a defesa de uma esquerda enraizada nas lutas populares, dos setores mais oprimidos da população, e que se unifique pela derrubada do governo genocida de Jair Bolsonaro, com seu programa de destruição social, econômica e ambiental. O culto à morte presente entre os fascistas manifestou-se mais uma vez no enxame de bolsonaristas que estão propagando mensagens de ódio no perfil de Marcelo Biar em rede social nos últimos dias e horas, celebrando seu falecimento. Biar prescreveu-nos, em texto publicado em maio em suas redes sociais, o tratamento a ser dispensado a esses vermes.

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O historiador e lutador social Marcelo Biar fez as vezes também de romancista, no livro “Antonio Conselheiro: Nem santo, nem pecador” (Rocco, 2009). Com seu talento de escritor, sensibilidade humana e visão militante, deixou-nos as palavras finais que reproduzimos abaixo. Quando escreveu o texto, Biar não estava com Covid-19 ainda, mas já imaginava o pior, caso se infectasse, por ser grupo de risco, como doente cardíaco. Deixou-nos um alerta: nem “novo” nem velho normal, nada de desejar o retorno à rotina de opressão e exploração. Eis a receita do pai de Francisco e companheiro de Thayna para a vida pós-pandemia: “Espero que tudo passe, que tramemos revoluções, que conversemos com nossos ancestrais, que mandemos muitos para a puta que pariu e que andemos descalços por quintais falando eu te amo”.

(Com informações do texto do economista José Luis Fevereiro, companheiro de militância de Marcelo Biar).

AGORA QUE DESCOBRI QUE VOU MORRER, VOS DIGO…

(Marcelo Biar, em 9 de maio de 2020)

A proximidade da morte é sábia. Faz com que inevitavelmente, queiramos falar e fazer coisas. Em 2016 tive um infarto e coloquei 4 stents. Sim, é um susto, mas vida seguiu. Fui só eu naquela hora. Agora vem a pandemia e são e somos, todos. NÃO estou infectado, deixo claro, mas tudo pode ser uma questão de tempo. Mas e daí não estar se sei que outros tantos estão? Em meio a isso ficou tudo mais claro para mim, e de mim. Porque não se trata mais do medo de morrer, até porque esta é uma certeza com variações de tempo, mas de não existirmos mais.

Na eminência da morte surgem urgências de explicar e viver coisas e medo de não falá-las e não vivê-las. Quero que saibam e entendam que eu e muitos outros sempre vimos o mundo em pandemia e nos horrorizamos. A pandemia da fome, da escravidão, da desigualdade, do egoísmo. Alguns de nós, em outros tempos que espero não retornem, foram presos e mortos por falar contra esta pandemia. Nos horrorizamos quando víamos mandarem pessoas saírem das ruas e avisávamos que estes não tinham casa, tanto quando agora vemos governantes mandarem pessoas saírem de casa e irem para a morte.

Sempre foi horrível para mim, ver as pessoas morrerem sem acesso a um cuidado básico de saúde enquanto grupos capitalistas ficam ricos com a venda de planos de acesso a isso que é direito básico de qualquer cidadão. Sempre gritei contra a escravidão porque entendia que ela seguia na perseguição étnica, no superencarceramento, na perseguição a manifestações culturais populares como samba e funk, como na capoeira, na perseguição aos terreiros de candomblé e umbanda, enfim, em tudo que vinha do popular. Imagina se deixariam os pobres seguirem “deuses“ que são de característica humana. Imagina permitir tranquilamente, uma religião onde as principais entidades são de origem popular brasileira como pretos velhos, caboclos, boiadeiros etc. Imaginem se permitiriam uma cultura de chás e fitoterapia, e parteiras, numa saúde humanizada. Assim como na educação jamais quiseram permitir diálogo e troca. Jamais deixaram o povo se organizar com bases à emancipação. NÃO, isso tudo os atrapalharia muito. Como lucrariam e explorariam?

Se eu morrer amanhã vocês terão entendido do que falávamos? Se vocês morrem amanhã, terão entendido quem os matou?

Tenho receio ainda, e vamos ao campo do pessoal, de ter contos e músicas que ninguém leu ou ouviu. De não ter lido algum livro ou não ter visto algum filme. Muito medo de não conhecer alguma música do Chico Buarque. Tenho medo de não ter dito eu te amo a todos que amo. Tenho medo de não ter mandado alguém para a puta que pariu, sendo este notório merecedor.

Mas de todos os meus medos o maior é que isso tudo passe e voltemos ao normal. Morrendo lenta e cotidianamente, sem que chamemos atenção, da pandemia que sempre nos assolou. Do mal que regamos. Morro de medo de me deixar levar por um enorme bloco de carnaval, profundamente embriagado por todo um fim de semana e, na segunda feira, voltar à rotina.

Espero que tudo passe, que tramemos revoluções, que conversemos com nossos ancestrais, que mandemos muitos para a puta que pariu e que andemos descalços por quintais falando eu te amo.

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