Ele zombou da Justiça, enganou o povo, traficou armas e fugiu da polícia

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Já se conhece falso médico, falso padre, falso playboy, falso empresário e outros falsários. E um falso juiz? Pois a revista eletrônica Consultor Jurídico vai contar agora a história de um magistrado de araque, que assumiu uma comarca, enganou a sociedade local, promoveu julgamento, obteve armas e dinheiro, foi embora, fugiu da polícia e sumiu. Depois ele foi processado criminalmente, condenado à revelia e teve a punição prescrita 16 anos mais tarde. Também foi preso no Paraguai por tráfico de armas e acabou salvo por advogados brasileiros, atuou em prefeitura no Espírito Santo, recebeu gratificações e virou nome de rua.

Por Eduardo Reina, compartilhado de Conjur




A cidade de Porto Murtinho foi
enganada pelo falso juiz no ano de 1958

No meio da tarde daquela segunda-feira, 20 de outubro de 1958, pousava no aeroporto municipal de Porto Murtinho, então estado de Mato Grosso, atualmente no Mato Grosso do Sul, um avião da Real Aerovias. Era o início da chamada estação úmida, quando começa o período de chuvas e o Pantanal se enche de água. Entre os poucos passageiros que desembarcaram estava Salvador Pacheco.

Do modesto campo de pouso, ele seguiu para uma pensão, localizada a cerca de um quilômetro dali, no centro da cidade situada às margens do Rio Paraguai, fronteira com o país vizinho.

Porto Murtinho era uma cidade pacata fundada dentro das terras da antiga Fazenda Três Barras. Contava com 8.436 habitantes, de acordo com o censo do IBGE de 1950. A área urbana do município, conhecido como o último guardião do Rio Paraguai, abrigava 2.507 pessoas.

Duas semanas antes, os murtinhenses haviam acabado de eleger deputados federais e estaduais no escrutínio de 3 de outubro. E nem bem chegou à cidade, Salvador Pacheco procurou o juizado local e se apresentou como juiz substituto nomeado pelo então governador de Mato Grosso, João Ponce de Arruda, no dia 7 daquele mês.

Aos 39 anos de idade, bem alinhado, cabelos cuidadosamente penteados com brilhantina, trajando terno de linho branco, indumentária semelhante à utilizada na posse organizada a toque de caixa e marcada para o dia seguinte, o advogado se mostrou solicito com os oficiais dos dois cartórios do município. Rápida convocatória correu a cidade.

Na terça-feira, às 15h, toda a elite de Porto Murtinho compareceu ao Clube Caiçara para a audiência especial e a solenidade de posse. O fórum estava interditado. Lá estiveram, segundo ata do evento, o prefeito Otávio de Oliveira, o delegado, militares, médicos, religiosos, empresários, o cônsul do Paraguai, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil na localidade e outras autoridades. Houve discursos de agradecimento e saudação, finalizando com um coquetel de confraternização.

Toque de caixa
Salvador Pacheco foi empossado como juiz de Direito e juiz eleitoral. Ele se mostrou prestativo e convocou já para o dia seguinte um júri especial e sorteio de jurados. A sessão ocorreu no dia 24 e teve uma sentença proferida no dia 29. Não se sabe o motivo de tanta urgência para esse caso.

Tratava-se do julgamento de Eurico e Roberto Codorniz, Augustinho Echeverría, Clotilde Relen e Emiliano de Souza. Todos acusados de terem participado do assassinato do peão Alcebíades Reinoso Artiga, arrendatário de uma invernada na Fazenda Areia, de propriedade de Honorata Machado Codornez.

O homicídio, que ocorreu no dia 18 de fevereiro de 1957, teve requintes de crueldade. Depois de ser atingido por três tiros disparados por Eurico, Alcebíades teve o ventre aberto a faca.

Os acusados já estavam presos preventivamente. O juiz Salvador Pacheco recomendou que fossem julgados pelo Tribunal do Júri.

Roteiro de fuga
Menos de 24 horas depois de ter proferido a sentença, Pacheco foi até o quartel da 2ª Companhia de Fronteira do Exército e solicitou uma viatura e um motorista para levá-lo a Aquidauana, sob o pretexto de que havia sido convocado pelo governador com urgência. De Aquidauana iria para Campo Grande. O objetivo era pegar a estrada já naquela noite.

Pouco antes, Pacheco convenceu funcionários de um cartório do fórum a lhe dar dois revólveres, para sua segurança na viagem. Um deles estava apreendido, envolvido em processo criminal. As duas armas calibre 38 foram entregues pelo tabelião do 1º Ofício José Ramos da Silva.

O juiz obteve ainda Cr$ 10 mil do coletor estadual Odílio Malheiro de Araújo e outros Cr$ 10 mil do advogado Hermínio Baptista de Azevedo. Os valores seriam empréstimos que Pacheco jurava quitar ao retornar a Porto Murtinho.

Ao coletor estadual ele disse que a viagem urgente foi provocada por uma convocação da presidência do Tribunal de Justiça. Ao advogado, alegou que seria testemunha num casamento marcado para a cidade de Parnaíba.

Baldeação e prisão
A caminhonete do Exército saiu de Porto Murtinho e o levou até a cidade de Jardim, distante 203 quilômetros. Lá, trocou de viatura na sede da Comissão de Estradas de Rodagem nº 3 (CER-3), do Ministério dos Transportes, em Jardim, e seguiu rumo a Aquidauana.

Ele, no entanto, nem chegou ao destino. Depois de rodar cerca de 51 quilômetros, ao passar pelo município de Nioaque, foi parado e preso. O motivo foi que o juiz Cesarino Delfino César, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, enviou comunicação a Porto Murtinho alertando que Salvador Pacheco não era juiz.

O aviso chegou em forma de telegrama, recebido pelo promotor César Fróes, que contatou o comando da 2ª Companhia de Fronteira, que, por sua vez, comunicou-se com outros postos do Exército no estado. Dizia o telegrama que Pacheco era um “audacioso vigarista, cujas atividades criminosas deveriam ser reparadas energicamente”.

Pacheco acabou detido em Nioaque e conduzido à Justiça em Aquidauana. De lá, o falso juiz seguiu escoltado num trem rumo a Campo Grande, onde seria entregue à polícia.

Contudo, no meio do caminho, entre Aquidauana e Campo Grande, o falso juiz fugiu. São várias as versões sobre a fuga, desde que ele se aproveitou de cochilo dos militares da escolta até leniência dos mesmos, como forma de evitar que a Justiça de Mato Grosso passasse vergonha com o caso do falso juiz.

Outro golpe
Enquanto isso, em Porto Murtinho, a população falava sobre o falso juiz, que enganara a nata da sociedade local. Descobriu-se que o mesmo golpe havia sido praticado por Salvador Pacheco uma semana antes, no dia 14 de outubro, no fórum da comarca de Rio Brilhante, a 394 quilômetros de distância de Porto Murtinho, de acordo com ata da sessão especial de posse do falso juiz.

A solução para punir o falso magistrado correu a toque de caixa. Um inquérito policial foi aberto contra Salvador Pacheco em Porto Murtinho, em 31 de outubro. E sua autuação, à revelia, ocorreu em 4 de dezembro por usurpação de função pública e estelionato.

A partir daquele momento, o caso andou depressa. Em 9 de dezembro, foi expedido um mandado de prisão preventivo.

Na antevéspera do Natal, o oficial de Justiça José Feliciano Rodrigues, que teve a incumbência de citar Pacheco, relatou em uma certidão que ele não fora encontrado para ser intimado. Tal intimação tinha como foco uma audiência marcada para o dia 24 de dezembro. “Acha-se em lugar incerto e não sabido”, escreveu o oficial.

Em janeiro de 1959, no dia 27, o falso juiz foi considerado oficialmente foragido e marcou-se o julgamento.

Zombaria
Mesmo sem ter sido citado oficialmente, Pacheco ficou sabendo da audiência agendada. Tanto que enviou, a partir da cidade paulista de Bauru, um telegrama à Justiça de Porto Murtinho em que desdenhou da situação. “Desmoralisada (sic) justiça matogrossense (sic) impossível presença julgamento. Fica outra oportunidade. Abraços. Dr. Salvador Pacheco”.

O defensor dativo do falso juiz, Raulino José Macedo, escreveu em 6 de abril de 1959, dias antes do julgamento final, que “não há quem punir, de vez que o acusado não praticou os crimes descritos na denúncia”.

Macedo foi contundente: “O que houve foi apenas um cochilo das autoridades locais, em aceitarem um indivíduo chegar na Comarca dizendo haver sido nomeado Juiz de Direito Substituto pelo excelentíssimo dr. Governador do Estado e, sem exibir nenhuma credencial, assumiu o dito cargo, passando a funcionar pelo período de nove dias”.

O defensor pediu a absolvição de Salvador Pacheco. “Impõe-se por isso decisão justa, a fim de que sirva de exemplo às demais autoridades do nosso Estado, a fim de evitar que qualquer charlatão assuma um dos mais altos cargos sem o revestimento das formalidades legais.”

Condenação e extinção da pena
Em 25 de abril de 1959, depois de ouvir oito testemunhas, o juiz Heliophar Serra condenou Pacheco a dois anos e oito meses de reclusão. Dias antes, Serra havia recebido outro telegrama de Pacheco, em que ele dizia ser “impossível minha presença julgamento (sic) pois tenho outros compromissos”.

A sentença, porém, não foi executada. Salvador Pacheco nunca foi encontrado.

No dia 2 de abril de 1974, a promotoria pública de Porto Murtinho votou pelo arquivamento dos autos do crime cometido por Salvador Pacheco por usurpação de função pública e estelionato.

Três dias depois, a Justiça decretou a extinção da punibilidade e a ocorrência da prescrição dos crimes. Assim, todo o caso terminou arquivado. E ninguém punido, apesar dos prejuízos e da vergonha protagonizados pela sociedade murtinhense.

Quem era Salvador Pacheco?
Salvador Pacheco foi um advogado que teria nascido no Rio de Janeiro em 10 de dezembro de 1919. Passou a infância na então capital da República, de acordo com informação publicada na revista Tico Tico, nº 741, em 17 de dezembro daquele ano. A Tico Tico era chamada de “semanário das crianças”.

Em 1948, recebeu Cr$ 800 como gratificação por ter secretariado quatro sessões da Câmara de Vereadores de Guarapari (ES), de acordo com a Lei nº 26, de 13 de dezembro de 1948. Aliás, Pacheco deve ter sido uma figura bastante conhecida em Guarapari. Tanto que seu nome batiza uma rua no bairro de Nossa Senhora da Conceição.

Contrabandista
Chama a atenção, porém, uma passagem da vida desse estelionatário. Três meses antes dos golpes em Rio Brilhante e Porto Murtinho, ele foi preso no Paraguai. O motivo: contrabando de armas.

De acordo com o jornal Diário do Paraná (pertencente ao grupo Diários Associados) de 12 de julho de 1958, Pacheco vivia na cidade de Serra do Salitre, em Minas Gerais. Foi para Assunção, no Paraguai, e hospedou-se no Hotel Colonial. Lá teria conhecido uma estudante de nome Chini. Ao saírem do bar do hotel, ambos foram detidos por militares paraguaios, no dia 5 de junho.

Pacheco permaneceu preso por algumas semanas. Os policiais queriam saber onde estavam as armas contrabandeadas do Brasil e quem seria o receptador delas, segundo a reportagem. O brasileiro, que disse ter ficado numa cela com mais de cem pessoas, também teria sido torturado para confessar o crime.

A embaixada brasileira em Assunção, por meio do embaixador Zenóbio da Costa, um general de Exército, conseguiu libertá-lo, com a ajuda do cônsul Murilo Bastos.

Pacheco, então, teria abandonado todos os seus pertences e documentos no Hotel Colonial e, aconselhado pela embaixada brasileira, tomado um avião rumo à cidade de Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com o Brasil.

Nessa cidade, foi recebido pelo cônsul Agostinho Miranda e por um advogado, antigo amigo de banco de faculdade, Dionísio Miguel. Atravessaram a fronteira até Ponta Porã, já no Mato Grosso. De lá, rumou a São Paulo, chegando à capital paulista no dia 11 de julho.

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