Elegemos Conselheiros Tutelares acusados de crimes como homicídio

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Levantamento inédito revela ainda avanço da extrema direita nos conselhos tutelares das capitais brasileiras após as eleições do ano passado.

Por Mikhail Favalessa, compartilhado de The Intercept




OS CONSELHOS TUTELARES têm o dever de resguardar os direitos de crianças e adolescentes diante de denúncias de ameaças e violações. Mas, nas eleições de outubro de 2023, ao menos 54 dos escolhidos para ocupar esses espaços nas capitais eram acusados de improbidade, ilegalidades e crimes como agressão infantil, dívida de pensão e até homicídio. 

Em Manaus, Francisco Coelho de Souza Neto foi indiciado pela acusação de atropelar e matar o motociclista Alessandro da Silva Nascimento na Avenida Humaitá. De acordo com o inquérito policial, ele estava completamente embriagado no momento do acidente.

Em agosto de 2023, o técnico de enfermagem Daniel Castro Lima atendeu uma criança de 9 anos em Campo Grande. Quando o pequeno perguntou se o ponto que levaria doeria, Lima teria respondido: “Vai, e vou precisar de cinco pessoas para segurar você”. Segundo a mãe da criança relatou em boletim de ocorrência, ele teria mandado o menino calar a boca e lhe dado um tapa no ombro.

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Já Leidimar Ribeiro de Souza, o “Leidimar do Goiânia Viva”, é acusado pelo Ministério Público de Goiás de desvio de dinheiro, entre 2013 e 2014, do programa Habitar Melhor, do governo estadual. Os recursos eram destinados a reformar e ampliar casas de famílias de baixa renda. O esquema teria dado um prejuízo de R$ 2,3 milhões aos cofres públicos à época — ou R$ 3,8 milhões, se corrigidos pela inflação.

DanielFrancisco e Leidimar são apenas três dos 54 casos de conselheiros eleitos pelo país em 2023 que respondem a inquéritos, ações penais e ações civis públicas por crimes e atos de improbidade administrativa.

Intercept Brasil analisou a ficha corrida de um a um dos quase 1,3 mil conselheiros eleitos em 25 capitais brasileiras – apenas Boa Vista, capital de Roraima, e Curitiba, do Paraná, ficaram de fora porque os sistemas dos Tribunais de Justiça de ambos Estados não permite buscas amplas de processos judiciais. 

O Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, faz ponderações quanto à análise dos antecedentes criminais dos candidatos ao Conselho Tutelar em todo país.

No guia de atuação de 2023, o CNMP destacou que o ECA traz entre os requisitos às candidaturas o de “reconhecida idoneidade moral” – o que, na avaliação do CNMP, é um “conceito jurídico indeterminado”, deixando a interpretação em aberto.

“Nos casos em que os documentos analisados apresentam o candidato como investigado ou réu, ainda sem condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado […], a Comissão Especial deve observar, detidamente, a gravidade dos fatos e se eles efetivamente desabonam sua idoneidade moral, o que não se confunde com o trânsito em julgado de ação penal, pois ‘nem tudo que é imoral é ilegal’”, pontuou o CNMP, citando o entendimento de 2018 do Supremo Tribunal Federal.

Por essa abertura de interpretação, Luiz Carlos Gomes Rodrigues, o “Carlinhos”, ex-conselheiro tutelar em Belém, foi afastado do cargo e ficou sem o salário por suposta falta de idoneidade. 

Servidor de carreira da Secretaria Municipal de Educação, ele teve a prisão preventiva decretada em dezembro de 2020, acusado pelo Ministério Público do Pará de ter estuprado a filha de seus vizinhos. A menina tinha apenas 8 anos de idade e teria sido chamada para a casa de Rodrigues para assistir a desenhos. 

Ainda não houve julgamento, mas o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente concluiu pela falta de idoneidade do acusado e o afastou do cargo. Em 2020, o ex-conselheiro entrou com uma ação contra a prefeitura para ser ressarcido pelos meses sem receber. 

Mas o juiz Gabriel Pinós Sturtz rejeitou a ação por avaliar que Carlinhos havia sido afastado por “esvaziamento do requisito da idoneidade moral” e que isso “nada tem a ver com presunção de inocência ou necessidade de trânsito em julgado da ação penal”.

As eleições dos conselhos tutelares no Brasil em 2023 foram marcadas pelo avanço da extrema direita: a senadora e ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves se mobilizou para convencer seguidores a irem votar. Foto: Luciano Claudino/Código19/Folhapress

Extrema direita e conservadorismo religioso crescem nos conselhos

Em meio à falta de regulação das candidaturas e da disputa, as eleições dos conselhos tutelares no Brasil em 2023 também foram marcadas pelo avanço da extrema direita. 

A senadora e ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Jair Bolsonaro, Damares Alves, se mobilizou para convencer seguidores a comparecerem aos pleitos. 

Conhecida por sua influência entre os evangélicos e com uma coleção de episódios duvidosos envolvendo a defesa de crianças e adolescentes – como o discurso sobre menores que teriam dentes arrancados para fazer sexo oral, considerado mentiroso pelo MPF –, a senadora pelo partido Republicanos atuou fortemente durante sua gestão junto aos conselhos tutelares.

Em Cuiabá, capital de Mato Grosso, a pedagoga Josiany Duque Gomes Simas foi a quarta candidata mais bem votada, com 445 votos, para o 1º Conselho Tutelar, que cobre a região central da cidade. Um ano antes, Josiany concorreu a deputada federal pelo Patriota em Mato Grosso e obteve 622 votos, não sendo eleita.

A pedagoga esteve envolvida nos atos terroristas do 8 de Janeiro. A Advocacia Geral da União acionou Josiany e outras 58 pessoas físicas e jurídicas em uma ação civil pública por danos ao patrimônio público, com pedido de ressarcimento de R$ 20,7 milhões.

A pedagoga é considerada uma das financiadoras do quebra-quebra em Brasília. Ela teria organizado uma viagem de ônibus saindo de Mato Grosso com destino à capital federal dois dias antes de os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro tentaram um golpe de estado contra Luiz Inácio Lula da Silva.

Há relatos pelo país de candidatos que disputaram o cargo de conselheiros tutelares com apoio direto de políticos da extrema direita ou com proximidade a figuras desse tipo.

Ainda em Cuiabá, a candidata reeleita Nyniva Costa posou ao lado de Damares Alves, enquanto ela era ministra, depois de um encontro em 2021 com conselheiros tutelares na capital mato-grossense. A reunião foi comemorada com um almoço numa famosa peixaria da cidade e com publicação no Facebook da conselheira.

Uma mensagem à qual a reportagem teve acesso mostra que, na capital de Mato Grosso, circulou ao menos uma lista com indicações de “candidatas cristãs conservadoras”, apontando em quem os fiéis deveriam votar. Josiany Duque Gomes Simas era a candidata indicada para o Conselho Tutelar do Centro de Cuiabá.

Segundo reportagem d’O Globo, Maria Carolina Marquez Zamboni, eleita em Campo Grande, posou para fotos com o deputado federal Gustavo Gayer, do PL de Goiás. Já a candidata Pamela do Otoni utilizou o sobrenome do deputado federal Otoni de Paula, do MDB do Rio de Janeiro na disputa para o Conselho Tutelar em São Gonçalo, na região metropolitana do estado.

Há relatos pelo país de candidatos que disputaram o cargo de conselheiros tutelares com apoio direto de políticos da extrema direita.

Otoni tem histórico de participação em uma das pautas favoritas dos bolsonaristas e da extrema direita: os ataques a ministros do STF. O deputado é réu por difamação, injúria e coação no curso do processo por atacar o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito dos atos antidemocráticos, chamando o de “lixo”, “canalha”, “vergonha”, “esgoto” e “déspota” por causa de uma decisão dada no inquérito. 

O avanço da extrema direita vem de mãos juntas com a atuação de setores evangélicos e conservadores nos Conselhos Tutelares. Suelen Leme Serrano, conhecida como “irmã Suelen”, teve a candidatura contestada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campo Grande, por fazer campanha dentro de uma igreja. 

Os relatos são de que, na tentativa de se reeleger, Suelen teria tido ajuda de um pastor da Igreja Batista Imperial, Henrique Finotto, durante um discurso num culto próximo à data da eleição.

Com o avanço de setores conservadores, organizações e movimentos de defesa da infância, liderados pela organização não-governamental NOSSAS, um grupo voltado ao ativismo democrático por meio de projetos, táticas e estratégias de mobilização, lançaram a campanha “A Eleição do Ano”, reunindo candidaturas de defesa do ECA.

Ao todo, 2.521 candidaturas aderiram à plataforma, que teve 4,9 milhões de acessos até o fechamento do levantamento do Intercept. Dessas candidaturas, 1,6% foram de pessoas trans; 66,3% de mulheres; 35,9% de pessoas pardas; e 69,4% de novas candidaturas, ou seja, de pessoas que não estavam concorrendo à reeleição.

Cidades deve ter um Conselho Tutelar com cinco titulares, além dos suplentes, a cada 100 mil habitantes. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Eleitos para Conselhos Tutelares mostram falta de conhecimento do ECA

Apesar de ainda não haver uma unificação do modelo do processo de escolha dos conselheiros, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente regulamenta o processo com três etapas.

O registro da candidatura, com a checagem dos requisitos do ECA e documentos previstos em lei municipal; uma prova objetiva de conhecimentos da área de atuação dos conselhos, uma avaliação psicológica a critério da legislação de cada local; e a eleição propriamente dita.

A cada 100 mil habitantes, a cidade deve ter um Conselho Tutelar, via de regra, com cinco titulares, além dos suplentes.

Em Porto Velho, capital de Rondônia, três candidatas eleitas ao Conselho Tutelar têm buscado na justiça validar suas respectivas vitórias depois de obterem nota abaixo da média na prova de conhecimentos sobre o ECA.

A prova, segundo o edital, era de “conhecimento específico sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, de caráter eliminatório”. Na mesma cidade, há ainda o caso de outro candidato que foi reprovado no exame psicológico e buscou na justiça a validação de sua eleição.

Patrícia Castro Claros, Emanuelle Andrade Regis, Mirian de Oliveira Bispo e Felipe Xavier Costa constam na lista divulgada pela Prefeitura de Porto Velho como candidatos eleitos para o Conselho Tutelar da cidade neste ano. 

Patrícia, Emanuelle e Mirian tiveram notas abaixo de seis, que é a média exigida pelo edital da prefeitura. E Felipe foi reprovado no exame psicológico.

Elas e cerca de outros 50 candidatos entraram com uma ação contra a prefeitura e a Lotus Medicina e Segurança do Trabalho Ltda, empresa contratada para realização das provas e da avaliação psicológica.

Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e co-coordenadora do Observatório dos Conselhos, Miriam Krenzinger apontou que o conhecimento do ECA por parte dos conselheiros é algo a ser aprimorado, em especial pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, para normatizar as eleições com exigência de qualificação mínima.

O avanço de campos conservadores ligados às igrejas pode ser um problema, na medida em que as doutrinas religiosas se sobrepõem ao que está previsto no ECA e na Constituição Federal.

Krenzinger vê uma “intenção política, num viés conservador, de retomar os valores da família tradicional, de desrespeitar pautas democráticas, com viés religioso, conservador, de grupos neopentecostais” na atuação dos Conselhos Tutelares.

“É um grande perigo, porque é a esfera privada, com interesses privados, se apropriando de um órgão público. O mesmo acontece com segmentos partidários. Não existe nenhum ser neutro, as pessoas têm posições políticas, têm suas crenças, o que não é um problema. Vivemos num estado democrático. A questão é quando isso se apropria da máquina pública para fins de interesses eleitoreiros, de cooptação, de fisiologismo, de manipulação das pessoas mais vulneráveis”, explicou.

Inexistência de cadastro nacional de conselheiros é obstáculo

A falta de transparência por parte das prefeituras, responsáveis pela organização das eleições para os Conselhos Tutelares, dificultou a realização do levantamento do Intercept.

Informações dos candidatos estão espalhadas nos Diários Oficiais e, por vezes, as prefeituras divulgam apenas os “nomes de urna” dos eleitos. Apontamos aqui apenas as pessoas cujas identidades conseguimos confirmar.

Não conseguimos informações sobre Boa Vista, capital de Roraima, e Curitiba, no Paraná, porque os tribunais desses estados permitem apenas a busca por processos em varas específicas e não informam no mecanismo de pesquisa as competências de cada uma dessas unidades do Judiciário.

“A gente não pode desrespeitar a autonomia de cada município. Conforme prevê o ECA, cada município tem a sua legislação quanto ao processo de construção eleitoral. E isso dá margem para um processo extremamente fragmentado”, avaliou Miriam Krenzinger. 

Contudo, “é fundamental haver um cadastro nacional dos conselheiros e conselheiras recém-eleitos. Para termos, minimamente, um raio-x de quem são”, concluiu.

Conselheiros tutelares eleitos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, na cerimônia de posse. Foto: Ana Paula Fernandes

O que dizem os conselheiros e seus advogados

O advogado de Patrícia Castro Claros, Emanuelle Andrade Regis e Mirian de Oliveira Bispo negou que a reprovação inicial na prova indique falta de conhecimento sobre o ECA. Na ação judicial, pontuou que teria havido uma série de irregularidades na confecção das questões e na correção da prova. 

Segundo ele, após revisão da correção da prova, Emanuelle obteve média acima da mínima exigida e acabou empossada como conselheira tutelar. 

A ação prossegue com pedidos que incluem a possível anulação da etapa da prova de conhecimento, o que poderia beneficiar Patrícia e Mirian. 

Sobre Patrícia, lembrou que ela era conselheira tutelar no mandato anterior, com atuação elogiada, o que comprovaria seu conhecimento.

Se forem bem-sucedidas, a ação pode anular todo o processo e obrigar a prefeitura a contratar outra empresa para realizar os procedimentos.

A defesa de Felipe Felipe Xavier Costa afirmou ter entrado com mandado de segurança contra a prefeitura e a empresa responsável pelo processo de escolha dos conselheiros tutelares. Afirmou que houve “descumprimento dos prazos estabelecidos em edital acerca da avaliação psicológica” e que a empresa se recusou a fornecer o espelho da avaliação para eventual contestação. 

Foi dada liminar pela justiça para reaplicar a avaliação, o que foi feito e “considerou nosso cliente apto, estando o mesmo atualmente empossado”.

Procurado pelo Intercept, Francisco Coelho de Souza Neto informou, por e-mail, que não tinha nada a declarar sobre o acidente que matou Alessandro da Silva Nascimento.

Já Daniel Castro Lima afirmou por telefone que a situação narrada em termo circunstanciado não passa de fofoca. “Quanto mais ganhamos força na campanha [eleitoral], pessoas maldosas começaram a inventar conversas”, acrescentando que nunca foi notificado oficialmente.

A defesa de Leidimar do Goiânia Viva confirmou a existência da denúncia do Ministério Público de Goiás, mas afirmou que “não condiz com a verdade dos fatos e isto será provado em tempo oportuno”. Seu advogado disse que “a denúncia fala em ORCRIM (organização criminosa e desvio de cheques reforma ou moradia), mas Leidimar sequer conhece as pessoas citadas no processo”.

‘É um grande perigo, porque é a esfera privada, com interesses privados, se apropriando de um órgão público.’

Fizemos contato por e-mail com a Defensoria Pública do Estado do Pará, que defendeu Luiz Carlos Gomes Rodrigues, mas não houve resposta.

A conselheira tutelar Josiany Duque Gomes Simas foi contactada por telefone, mas disse não querer se manifestar sobre a acusação de ter financiado um ônibus que levou mato-grossenses a Brasília no 8 de Janeiro.

Também por telefone, informamos a Nyniva Costa o teor da reportagem. Ela se limitou a dizer que quaisquer informações poderiam ser fornecidas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e encerrou a ligação.

No caso de Suelen Leme Serrano, a “irmã Suelen”, foi feito contato com seu advogado. Ele informou que só poderia se manifestar com a ciência da cliente e não nos retornou.

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