Em Goiás, um padre é filmado interrompendo a missa para pedir votos para um candidato. No Piauí, um prefeito é suspeito de usar veículos da Prefeitura a serviço da campanha de um senador reeleito no Estado. Na praça de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, um candidato a deputado federal exibe máquinas compradas com dinheiro público como se fossem doações suas.
Os relatos acima, coletados a partir de denúncias anônimas, têm duas coisas em comum: todos apontam práticas que violam a lei eleitoral brasileira; e, por isso, todos serão alvo de investigação do Ministério Público Federal (MPF).
Todos os ilícitos eleitorais acima são velhos conhecidos da Justiça Eleitoral – apesar de graves, foram corriqueiros em eleições anteriores. Ao longo do pleito de 2018, porém, o MPF parece ter dado pouca atenção à questão das notícias falsas divulgadas por redes sociais, as chamadas “fake news”.
O uso de boatos e notícias falsas disseminados por redes sociais e aplicativos de mensagens como o WhatsApp está na ordem do dia de políticos, ativistas e eleitores desde a quinta-feira (18), quando o jornal Folha de S.Paulo publicou reportagem afirmando que empresários pagaram pela circulação de mensagens falsas contra o candidato petista à presidência, Fernando Haddad.
No dia seguinte, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, determinou à Polícia Federal que abrisse um inquérito para investigar o caso relatado pela jornal paulista.
Investigações eleitorais diversas também estão sendo feitas pelos Ministério Públicos de cada Estado – que têm poder para tratar de questões menores, como propagandas irregulares, mas não podem cassar o registro de um candidato, por exemplo. Além disso, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse que a Polícia Federal abriu 469 inquéritos para investigar crimes eleitorais no 1º turno – ele listou a propagação de fake news como um dos principais crimes investigados, ao lado da propaganda irregular e da compra de votos, mas não deu números.
Parte das denúncias do MPF tramita sob sigilo: é, portanto, impossível saber o número exato de investigações deste tipo abertas. Todas as apurações citadas na reportagem são públicas.
O rol de irregularidades que estão sendo investigadas pelo MPF é amplo: envolve desde compra de votos por parte de cabos eleitorais até a suspeita de liberação de verbas federais em troca de apoio político. Há também diversos casos de bens públicos (viaturas de polícia e carros oficiais) usados para campanhas.
Investigação sobre ‘fake news’ ainda é incipiente
Entre a quinta e a sexta-feira, PT e PDT entraram com ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a cassação do registro do candidato presidencial Jair Bolsonaro (PSL), tendo por base a reportagem da Folha – ainda não há qualquer despacho sobre a ação.
Mas, no Ministério Público, as apurações sobre o uso de fake news nas eleições ainda estão em marcha lenta. Das 111 apurações checadas pela BBC News Brasil, apenas uma diz respeito à difusão de boatos. Foi instaurada no dia 11 de outubro – na semana seguinte ao 1º turno – pelo procurador Marcelo da Mota, de Santa Catarina.
O objetivo da apuração era combater o “surgimento e disseminação de fake news acerca da lisura do pleito eleitoral, bem como a identificação e responsabilização das pessoas ou entes ligados à divulgação de notícias falsas”, especialmente os boatos de fraude nas urnas que circularam no domingo da votação do 1º turno.
Em outro procedimento, que não passou pelo MPF, a Polícia Federal indiciou uma professora de Educação Física do Rio Grande do Sul por espalhar boatos nas redes sociais – em vídeo, ela acusava o governo federal de enviar “urnas fraudadas para o Nordeste do Brasil”.
Na última quinta-feira, Dodge se reuniu com o ministro do STF Edson Fachin e com o ministro Jungmann para tratar do combate às fake news. Representantes das campanhas de Haddad e Bolsonaro estavam presentes. A chefe do Ministério Público disse que a liberdade de expressão precisa ser garantida, mas sem abusos.
No dia 11, a procuradora-geral da República publicou uma instrução determinando aos procuradores eleitorais que investiguem o uso de boatos. Os procuradores devem estar atentos, escreveu Dodge, a “notícias falsas (fake news) e discursos e práticas de coação, ódio e intolerância com motivação político eleitoral”.
Para o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do TSE, Gilson Dipp, a ausência de investigações sobre fake news tem “tudo a ver” com a forma como a Justiça Eleitoral e o MPF estão acostumados a trabalhar. “A Justiça Eleitoral e o MPF precisam sair da era da carroça e entrar na era do avião a jato”, compara ele.
“Todos estes ilícitos (spam, boatos, caixa dois) estão definidos na lei eleitoral. Não é pela falta de definição jurídica que estamos nesse embaraço. Certamente é porque há um despreparo total e absoluto para fiscalizar as novas formas de fazer propaganda na internet. E pode ser inclusive que este despreparo não se resuma ao Brasil”, disse Dipp à BBC News Brasil.
Dipp diz ainda que a Justiça Eleitoral, às vezes, gasta tempo e energia em excesso com questões menores, como propaganda eleitoral antecipada ou propaganda irregular. “Às vezes, o tal ‘abuso de poder econômico’ é um adesivo em um carro que é 50 centímetros mais largo do que poderia”, diz ele.
O que o MPF está realmente investigando
Revisando as apurações abertas pelo MPF, vê-se que a maioria delas diz respeito a ilícitos e crimes eleitorais clássicos, da época em que a campanha era feita principalmente com o que os políticos chamam de “3 S”: “sola (de sapato), santinho e saliva”.
Um dos casos em apuração no Ministério Público envolve um deputado federal reeleito e ex-ministro do governo Temer. Ainda antes do começo da campanha oficial, a prefeitura de Taquaruçu do Sul (RS) estacionou na praça central da cidadezinha máquinas compradas com emendas parlamentares do deputado, no valor de R$ 425 mil. Os equipamentos traziam uma faixa com o nome do parlamentar e de um aliado – para o Ministério Público, trata-se de “evidente intento de usar o bem público para a promoção da candidatura”.
Um episódio muito parecido teria ocorrido numa cidade gaúcha próxima a Taquaruçu do Sul, Frederico Westphalen. Desta vez, porém, a faixa trazia o nome de um deputado federal do PR gaúcho, também candidato à reeleição.
Em Goiás, um ministro do governo atual é suspeito de articular a liberação de verbas da pasta de forma a obter apoio político de prefeitos da região do entorno de Brasília para seus candidatos. O grupo dele conseguiu eleger um senador pelo Estado e dois deputados federais. E não só: segundo denúncia anônima recebida pelo MP, ele rodou o Estado “com recursos públicos” para promover as candidaturas – o que o ministro nega.
Os casos compilados pela BBC News Brasil e relatados acima são os que já passaram pelo primeiro crivo do Ministério Público Federal: os procuradores que atuam nas eleições decidiram abrir investigações prévias, chamadas de Procedimentos Preparatórios Eleitorais (PPEs), para apurar os indícios de irregularidades.
Formalmente, os responsáveis por estas apurações têm até 60 dias para decidir se abrirão ou não ações judiciais contra os investigados – mas o prazo pode ser prorrogado. Como os casos ainda estão sob investigação, a reportagem decidiu omitir os nomes dos envolvidos nos casos em que não foi possível contatá-los.
Outros deputados federais com mandato pelo menos até 1º de janeiro de 2019 também são investigados. Um deles, do Solidariedade do Ceará, teria sido beneficiado por propagandas eleitorais em uma rádio na cidade de Independência – as vinhetas foram pagas pela prefeitura de outra cidade cearense, controlada por um aliado político.
No Mato Grosso do Sul, um deputado federal da legislatura atual, eleito pelo PSDB, será investigado pela suspeita de usar dinheiro da Cota Parlamentar da Câmara em sua reeleição.
Em Niquelândia (GO), um vereador foi filmado pela Polícia Civil oferecendo dinheiro a eleitores em troca de votos para uma deputada federal do PR, que conquistou a reeleição no último domingo.
No interior do Piauí, um prefeito estaria usando veículos oficiais para ajudar na campanha de um senador do PP e de sua mulher, deputada federal pelo mesmo partido.
Em Goiás, um deputado federal eleito é acusado de rodar o Estado, antes ainda do começo da campanha oficial, com líderes religiosos locais. “Em vídeo juntado (…) o candidato aparece em uma espécie de lugar reservado num altar, e um padre, ainda não identificado, diz aos fiéis ali presentes: ‘Eu só posso voltar se ele for deputado. Vocês entenderam? Vocês entenderam mais ou menos o recado do padre? (…) Eu só posso vir se ele for deputado… porque senão não tem jeito de vir, porque fica muito longe e é ele que me traz, entendeu? ‘Tão’ ou não?”.
Ao abrir a investigação, o procurador Alexandre Moreira Tavares dos Santos diz que há decisões anteriores do TSE sobre o tema, segundo as quais é vedado o uso de cultos religiosos para pedir votos. O culto religioso, escreve o procurador, não é o “momento nem o local apropriado para se realizar propaganda eleitoral. Além do desrespeito às pessoas presentes ao culto, o desvirtuamento do ato religioso em propaganda eleitoral é ilícito, podendo, pela gravidade resultar em abuso de poder”.
Crime ou ilícito?
“O abuso de poder é coibido pela Constituição do país. A legislação eleitoral reconhece que alguns candidatos têm mais poder político ou econômico que outros. O que não pode é o abuso – quando, mesmo dentro da lei, você faz algo que lhe dê domínio sobre o eleitor em função de dinheiro ou poder”, diz à BBC News Brasil o advogado especializado em direito eleitoral Daniel Falcão.
Ele esclarece ainda que o abuso de poder não é crime, e sim um ilícito eleitoral. Não há pena de prisão para este ilícito, mas ele pode tornar o candidato inelegível ou fazê-lo perder o mandato.
“O abuso acontece quando você é filho de um prefeito e usa bens, equipamentos ou faz um evento com dinheiro público para se promover, por exemplo”, diz Falcão, que trabalha no escritório Boaventura Turbay Advogados.
Tanto crimes quanto ilícitos estão descritos no Código Eleitoral brasileiro. Os primeiros, diz Falcão, podem ser punidos com prisão. “É o que acontece com a compra de votos. Este é um crime, o crime de corrupção eleitoral”, diferencia ele. Em ambos os casos, cabe à Justiça Eleitoral julgar.
Como funciona a investigação de um crime eleitoral?
Cabe aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) de cada Estado julgar se os candidatos sob sua jurisdição cometeram ou não crimes ou ilícitos. A única exceção são os casos que envolvem candidatos à Presidência da República, julgados pelo TSE – e o exemplo mais recente foi a ação contra a chapa Dilma-Temer, que terminou em junho de 2017 com a absolvição da petista e do emedebista.
Durante o período das eleições, o MPF designa alguns procuradores responsáveis por investigar e denunciar crimes eleitorais – no jargão do órgão, eles são chamados de “procuradores regionais eleitorais”. As investigações podem ser abertas a partir de notícias enviadas por cidadãos ou por promotores (integrantes dos MPs dos Estados).
Eunice Dantas é a procuradora regional eleitoral designada para o Estado de Sergipe nestas eleições. Segundo ela, as investigações eleitorais costumam ganhar fôlego após o 1º turno da disputa. “Até a data da eleição, estamos focados em coibir práticas de propaganda irregular e em cuidar de procedimentos de registro de candidatos”, diz.
Quando a reportagem da BBC News Brasil conversou com Dantas, na primeira semana de outubro, a procuradora estava ocupada com vários casos ocorridos em municípios no interior de Sergipe. Lagarto, cidade de 100 mil habitantes, é um deles. “O prefeito, cujo filho é candidato a deputado, marcou para a semana da votação a inauguração de uma praça, junto com a entrega de 550 casas populares. Mesmo que o candidato não vá, o pai estará lá representando ele”, disse ela.
Mas por que é tão grave que um prefeito decida entregar algumas casas construídas em sua gestão às vésperas do pleito?
“Para a eleição ser justa, é preciso que exista paridade entre os candidatos. Imagine um candidato disputando sem o apoio político do chefe político local lá em Lagarto. Ele já entra na disputa prejudicado em relação ao outro que tem o pai usando a máquina em favor do concorrente dele”, diz ela.
Os procedimentos abertos pelo Ministério Público Federal representam uma minoria das notícias de irregularidades destas eleições: até o começo de outubro, o TSE já havia recebido mais de 16 mil alertas de cidadãos por meio de um aplicativo criado para monitorar irregularidades, chamado Pardal. A maior parte (cerca de 11 mil) dizia respeito a casos de propaganda eleitoral irregular.