Por Sérgio Guedes Reis, publicado em Jornal GGN –
Não é impossível que campanhas, inclusive a de Evo, tenham adotado práticas de clientelismo. Mas, até agora, não há nada a dizer a respeito do processo de contagem de votos
Com 98% de apuração, finalmente Evo Morales alcançou mais de 10 pontos de vantagem sobre Carlos Mesa – 10,25%, precisamente. Ainda há votos a serem computados em regiões tradicionalmente ligadas ao MAS, partido de Evo. O resultado confirma a parcial apresentada pelo próprio tribunal eleitoral boliviano, ainda na segunda-feira à noite, a qual indicava a vitória do atual presidente por margem similar a partir do cômputo das atas eleitorais (e não de cada voto). Na noite da eleição, uma primeira parcial, com cerca de 83% dos votos apurados, dava a Evo pouco mais de 7 pontos de vantagem a Mesa.
A imprensa se apressou a dizer que os resultados indicavam que era praticamente certa a realização de um segundo turno. Com a publicação da segunda parcial da contagem rápida apontando para a vitória em primeiro turno de Evo, e com a apuração voto-a-voto, ainda então na casa dos 60%, indicando percentuais similares de votação entre Evo e Mesa (cerca de 42% para cada um), um grande tumulto tomou conta da Bolívia. Todas as seções eleitorais foram incendiadas, e de algumas instalações – como as de Santa Cruz, Potosí e Chuquisaca – não sobrou nada. A convulsão social foi grande ao ponto de interromper o processo de contagem dos votos, paralisar serviços públicos, e até mesmo o campeonato de futebol nacional.
Essa sequência de fatos levou boa parte da imprensa a denunciar o processo eleitoral em curso como fraudulento – não simplesmente tratando da campanha de Evo e de sua controversa candidatura, mas sim do processo em si de contagem de votos. A OEA soltou nota afirmando que a “mudança de tendência” nos votos, observada na comparação entre a primeira e a segunda parcial, era “inexplicável” (enquanto confirmou que os primeiros números, que davam mais de 7 pontos de vantagem para Evo, batiam com apurações alternativas). Mesa declarou oficialmente que não aceitaria o resultado das eleições, e países da região pressionaram o governo boliviano. Boa parte da opinião pública internacional ratificou esses discursos.
Em seguida, houve uma sequência interessante de eventos: 1) a OEA clamou pela necessidade de que os resultados eleitorais fossem vinculantes entre as partes; 2) o governo boliviano convidou a OEA para que auditasse a contagem dos votos, e o convite foi aceito; 3) a OEA fez reunião com países observadores e recomendou que, em sendo a vitória de Evo apenas ligeiramente superior a 10 pontos, seria recomendável realizar, ainda assim, o segundo turno; 4) Ato contínuo, Mesa lançou um “grupo de advocacy” para pressionar pelo segundo turno. Ao mesmo tempo, portanto, a OEA defendeu o caráter vinculante das eleições e propôs que o segundo turno fosse realizado independentemente do resultado do primeiro turno – o qual poderá auditar e sanar qualquer dúvida sobre a existência de eventuais fraudes. Posições, a meu ver, irreconciliáveis. Quanto a mais de 10 pontos de vantagem seria “aceitável” para que não houvesse segundo turno?
Tão, grave, contudo, é a incompreensão e atores qualificados a respeito do processo de contagem de votos. Não há nada de inusual na performance de Evo. Para ilustrar, segue um exemplo, o qual poderia ser elaborado por um aluno de primeiro ano de um curso de Ciências Sociais. Vamos supor que:
- Haja uma eleição com 3 candidatos;
- Para ganhar, é preciso ou conquistar mais de 50% dos votos, ou mais de 40% e 10 pontos de vantagem para o segundo colocado;
- Há 1000 votos em disputa;
- Há cinco regiões no país (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte);
- Para facilitar, cada região tem o mesmo número de votos (200);
- O candidato A é mais forte no Sul e no Sudeste, e o candidato B é mais forte no Norte e no Nordeste (tabela 1);
- O monitoramento da apuração é feito a cada 20% do total de votos apurados;
- A apuração avança mais rapidamente nos primeiros 20% dos votos no Sul, depois no Sudeste, em seguida no Centro-Oeste e, com 80% dos votos apurados, o Norte e o Nordeste passam a ter boa parte dos seus votos contados (tabela 2);
Então, como mostra o gráfico, nesse cenário o candidato A chega aos 20% de apuração com 45% dos votos, e o B, com 37%; aos 60%, ocorre o empate (ambos com cerca de 41%); aos 80%, o candidato B abre 7 pontos de vantagem (44 a 37%) e, no final do processo, vence com 10 pontos de vantagem (46 a 36%).
Foram números bem próximos a esses os registrados, a cada momento da apuração, no pleito da Bolívia. Não há nada de inexplicável nos números de “Evo”, o candidato B, o qual consegue expandir sua vantagem de 7 para 10 pontos graças ao fato de que 70% dos votos que foram contados ao final do processo vieram do “Norte”, sua segunda melhor região; e 30%, do “Nordeste”, sua melhor região. Nesse cenário, a cada 7 votos ele obteve 4, seu adversário A teve 2, e o outro, 1. Não há nada de implausível aí, se essas são as regiões onde ele é eleitoralmente mais forte. Se aplicássemos exatamente esse modelo no Brasil, adotando os resultados eleitorais de 2018 por região e supondo que Norte e Nordeste seriam apurados mais rapidamente que as demais regiões, então teríamos Haddad vencendo Bolsonaro até cerca de 70% da apuração.
Houve colunista do UOL, com espaço na página inicial do portal, que disse com todas as palavras que “está ocorrendo fraude eleitoral na Bolívia”. Todos nós temos vieses, mas declarações como essa soam particularmente irresponsáveis, se não há evidências que as confirmem. Não é impossível que campanhas, inclusive a de Evo, tenham adotado práticas de clientelismo. Mas, até agora, não há nada a dizer a respeito do processo de contagem de votos – questão que se tornou central nesse pleito. Quase inexplicável, mesmo, é a cobertura “de orelha” feita pelos meios de comunicação estrangeiros a respeito das eleições na Bolívia – como se estivéssemos ainda em meados da década de 1990, em um mundo sem Internet e escassa infraestrutura de telefonia.