A atuação conjunta da Lava Jato com a Rede Globo foi recentemente desmascarada e exposta pelo jornalista Glenn Greenwald.
Por Eliara Santana, compartilhado de Viomundo
Segundo ele, as duas instâncias atuavam como “parceiras”, numa sintonia bem fina.
Para quem se encontra todas as noites com o Jornal Nacional, isso não era exatamente uma novidade, mas agora, com as revelações do Intercept, fica tudo bem às claras para todos.
Por isso, para entender melhor essa “parceria” e os enormes problemas que trouxe ao Brasil, é interessante observar o modus operandi, ou seja, os elementos estruturantes desse arranjo que, agora sabemos, contribuiu forte e decisivamente para o estado de coisas que estamos vivendo: golpe contra Dilma, prisão de Lula, eleição de Jair Bolsonaro, degradação da economia brasileira, para citar alguns fatos recentes.
Para muito além da divulgação de informações que deveriam ser sigilosas, posto que faziam parte de processos em andamento, essa parceria Globo -Lava Jato foi – e continua sendo – decisiva para direcionar os rumos políticos do país.
Porque, além do timing perfeito na divulgação de investigações, nas ações espetaculares da Força Tarefa e nas delações direcionadas, houve também a construção de uma linguagem simbólica que estruturou todas essas ações conjuntas e garantiu o enaltecimento de determinadas figuras e a criminalização sem defesa de outras.
Num artigo para a Revista Scripta (em conjunto com o professor Hugo Mari, da PUC Minas), explorei a questão de como a parceria mídia (fundamentalmente o JN)-Lava Jato contribuiu para a emergência de uma linguagem com características totalitárias no país.
Em linhas gerais, o que observamos se materializar àquela época, a partir dessa parceria, foi um padrão de totalitarismo expresso na linguagem marcado por:
*uma sintonia impressionante entre os pares envolvidos (Lava Jato, JN);
*grande homogeneidade no discurso;
*uma linha uniforme de pensamento único;
*o consenso e a parcialidade para abordar e classificar grupos sociais determinados, situando-os no campo simbólico da ilegalidade (mesmo na ausência de quaisquer elementos significativos para esse enquadramento, enquanto outros eram qualificados no campo da legalidade, apesar dos inúmeros ilícitos).
Enquadrada pelo repertório da corrupção, essa linguagem (fruto e conformadora da parceria) construiu campos de sentidos, marcando simbolicamente os sujeitos a serem identificados como corruptos, a despeito de evidências existirem ou não.
Nesses campos de sentidos, temos, então, algumas categorias marcantes e sempre presentes no noticiário que direcionavam as interpretações e estruturavam um sentido pretendido (combate à corrupção, prisão de corruptos, abertura de processos, delação premiada, condução coercitiva, punição aos corruptos).
Essas categorias se transformaram em uma unanimidade das duas instâncias que atuavam em conjunto, de modo homogêneo e harmônico, sendo perfeitamente encenadas pelo Jornal Nacional e levadas discursivamente por fontes de autoridade da Lava Jato (Dallagnol, por exemplo).
Funcionava mais ou menos assim: a Lava Jato definia quem deveria ser exposto e entregava de bandeja ao JN, que se encarregava de uma edição espetacular para não deixar dúvidas sobre a culpa do indivíduo retratado (sempre identificado como corrupto) e a necessidade de punição para ele.
Por outro lado, os grupos eleitos como porta-vozes da Justiça (entendida aqui como um conceito, não como instância) eram constantemente incensados e enaltecidos.
Com toda certeza, Moro e Dallagnol não teriam alcançado tamanho poder se não tivessem sido construídos como entidades inquestionáveis pela mídia corporativa, Jornal Nacional à frente.
Em encenações dramáticas, a parceria julgava e definia o sujeito culpado. Sem tempo para questionamentos em relação aos processos ou defesas dos envolvidos. Na TV, a Lava Jato era suprema.
Delações sem comprovação e timing perfeito
O recurso da delação premiada fortaleceu uma onda de denuncismo no Brasil, quando ilações sem confirmação profunda, suposições, ganhavam ar de sentença definitiva e tinham um valor inquestionável.
As acusações sem comprovação definitiva, feitas por pessoas que, agora sabemos, eram pressionadas a fazê-lo, ganharam um peso inexplicável quando o objetivo era punir os “inimigos” (previamente eleitos).
As delações eram, então, mostradas à exaustão pelo JN (e pela mídia corporativa como um todo), sem qualquer questionamento, como se fossem procedimentos normais para salvar o país da grande corrupção e punir severamente os “inimigos” da nação.
Eram falas e condutas aceitáveis a priori, não importando se os delatores diziam mesmo a verdade ou sob quais condições ocorria a delação. A Lava Jato, em sua sanha punitivista, não podia ser questionada. E de fato não o era.
Outro elemento marcante nessa parceria era o timing perfeito no trabalho da dupla parceira – as informações eram sempre divulgadas em momentos políticos decisivos do cenário nacional.
Portanto, não eram divulgações corriqueiras ou aleatórias – eram feitas com uma intencionalidade marcada, para influenciar o cenário (quase sempre, alterando-o).
Vamos relembrar alguns desses momentos preciosos de atuação da parceria (citados com mais detalhes em outros artigos anteriores):
16 de março de 2016 – Dilma indica Lula como ministro-chefe da Casa Civil
Era um contexto conturbado para a presidente Dilma, e Lula como chefe da Casa Civil representava uma oportunidade de reação frente à crise.
No dia do anúncio, o então juiz Sérgio Moro libera gravações de diálogos do ex-presidente Lula, investigado pela Lava Jato.
O JN tem acesso exclusivo a elas. Na programação da Globo, à tarde, há chamadas do JN antecipando a divulgação. A edição da noite garante o espetáculo. O tema é recortado e tem várias matérias, ao longo da edição.
A encenação da leitura dos conteúdos dos vazamentos dos áudios, lidos e interpretados por Bonner e Renata, traz uma forte carga de dramaticidade, com gesticulações e impostação de voz num tom de indignação diante das conversas vazadas.
Não há nenhuma referência às implicações do vazamento, já nomeado como “liberação do sigilo da investigação”, e também não se explica o caráter repentino da decisão do juiz Sérgio Moro em quebrar a proibição de divulgação dos áudios quando Dilma decide nomear Lula chefe da Casa Civil.
Os trechos do diálogo são entremeados por notícias das investigações, que trazem sempre como fonte a Polícia Federal (voz de autoridade). Há sempre um destaque marcado, interrompido na leitura, para os “palavrões” ditos por Lula.
O conjunto de matérias tem, no total, 19 minutos. A edição do Jornal Nacional se divide praticamente entre a nomeação de Lula – com espaço para críticas da oposição e manifestação na rua – e as conversas vazadas.
1 de outubro de 2018 – às vésperas da eleição presidencial (que ocorreu em 5 de outubro)
O ambiente estava bastante polarizado, com as pesquisas dando grande proximidade entre os dois candidatos e um enorme número de indecisos.
As delações foram uma força na encenação televisiva da Lava Jato, e o ex-ministro Pallocci foi, sem dúvida, uma importante “aquisição” para a parceria.
Na abertura da matéria, às vésperas do primeiro turno das eleições, William Bonner anuncia:
“O ex-ministro Antonio Palocci diz em delação que o ex-presidente Lula sabia da corrupção na Petrobras e que o então presidente encomendou a construção de sondas para garantir, com recursos ilícitos, o futuro do do Partido dos Trabalhadores e a eleição de Dilma Rousseff. Palocci também disse que as campanhas de Dilma de 2010 e 2014 custaram quase três vezes o valor declarado. O PT afirma que o ministro Palocci mente”.
Está marcada discursivamente, na fala de Bonner, a intenção do PT de se perpetuar no poder, custe o que custar.
A clássica imagem de fundo vermelha com um tubo de esgoto por onde escorre dinheiro aparece animada nessa edição e vai se alterando à medida que Bonner fala. Nem é preciso fazer qualquer referência a Fernando Haddad…
Em termos discursivos, o campo simbólico que é construído a partir do funcionamento da estreita parceria JN – Lava Jato tem elementos muito significativos:
1.Criminalização da política por meio de um destaque sistemático a um viés negativo dessa prática/ação (dando grande destaque a um tema recorrente, presente em boa parte do noticiário, que foi a corrupção);
2. Construção de enunciados narrativos que privilegiam o espetáculo, o místico, o messiânico em detrimento do racional, do legal, do institucional;
3.Ressignificação e abordagem dos acontecimentos numa perspectiva a-histórica: não há um passado subjacente a alguns fatos (a corrupção passa a existir magicamente, em tempos contemporâneos);
4.Silenciamento reiterado, não aleatório, em relação a assuntos e personagens específicos;
5.Um grande tema/conceito se impõe – ou é imposto – e passa a nortear a vida em sociedade: corrupção, apresentada sob a ótica de algo até pouco tempo inédito no país, uma ficção bem construída, sempre trazida à cena por um viés de autoridade (é o Judiciário que revela esse problema).
6.Marca-se uma polarização, em termos de campos conceituais, onde se estabelece a ideia de cidadãos de bem contra corruptos (geralmente políticos que se enriquecem com dinheiro público), sem que o teor de corrupção seja devidamente averiguado, mostrado, realmente investigado: uma simples suspeita já é o suficiente para colocar em algum sujeito o carimbo de corrupto;
7.Espetacularização das ações para reforçar os conceitos e os campos de sentidos – as fases da Lava Jato são teatralmente conduzidas, mostradas, encenadas na TV, e os capítulos do dia são divulgados com antecedência para garantir o espetáculo e a audiência;
8.O justiçamento se torna, então, uma forte tendência no Brasil, com reputações que não se ajustam ao figurino ideológico dos grupos dominantes sendo destruídas sem possibilidade de defesa efetiva.
Com a observação desses elementos, não é exagero dizer que a Lava Jato, como hoje se revela, não existiria sem o apoio inquestionável da mídia corporativa, sobretudo do JN.
E também não é exagero dizer que essa parceria redefiniu os rumos políticos do país. E para pior.
PS: Na segunda parte, como a parceria está se mantendo após as denúncias do Intercept.
*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes