Dom Hélder Câmara foi indicado quatro vezes ao prêmio pela defesa dos direitos humanos, mas não obteve em nenhuma vez a honraria
Por Eduardo Reina e Maria Angélica Ferrasoli, compartilhado de Ópera Mundi
O arcebispo-emérito de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, foi indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz por suas ações em defesa dos direitos humanos. E no período de quatro anos consecutivos, de 1970 a 1973, o governo militar brasileiro agiu para impedir que o religioso obtivesse a indicação ou recebesse a láurea. Os militares teriam levado os empresários suecos a trabalhar nos bastidores contra o favoritismo do bispo católico ao prêmio. Caso não fossem atendido, o governo civil-militar da ditadura no Brasil (1964-1985) ameaçou impedir as multinacionais a remeterem lucros para suas matrizes. A chantagem inclui ainda preparação de dossiês contrários aos religiosos brasileiros, divulgados pela imprensa sueca.
Dom Hélder Câmara (1909-1999) foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB). Defensor da teologia da libertação. Pregava ação de uma igreja voltada aos mais pobres e pela não-violência. Por sua atuação pelos direitos humanos, especialmente no período da ditadura civil-militar, recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais. Foi o brasileiro por mais vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Também é o Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos.
O Prêmio Nobel foi criado em 1900, a partir de ideia do cientista Alfred Nobel, de Estocolmo, Suécia. A Fundação Nobel iniciou as premiações no ano seguinte. São seis prêmios internacionais anuais concedidos aos que se destacarem em Química, Física, Fisiologia ou Medicina, Literatura, Paz e Economia. Todos os indicados podem ser conhecidos por meio deste link.
Por sua atuação, Dom Hélder também colecionou inimigos que viam nele uma ameaça ao regime ditatorial. Era constantemente ameaçado pela organização de extrema direita Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Teve amigos próximos sequestrados. Um deles, seu assessor e padre Antonio Henrique Pereira Neto, assassinado em 1967. Mas, principalmente, incomodou com louvor expoentes políticos e do empresariado nacional e internacional ligados aos militares na ditadura.
Lobby contra Dom Hélder
A primeira ação desencadeada neste lobby ocorreu em 1970. Em plena ditadura civil-militar, representantes da direção da Scania e de outras empresas de origem escandinava que operavam no Brasil foram chamados pelos militares para impedir que Dom Hélder fosse agraciado. O movimento feroz contra o católico envolveu várias frentes, da diplomacia ao empresariado. Obteve sucesso, mas deixou consequências que perduram até hoje.

Antonisse, Marcel / Anefo / Wikimedia Commons
De acordo com o ex-representante do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA) e embaixador do Brasil no Equador, Israel, Peru e Alemanha, Vasco Mariz, à época chefe do Departamento Cultural do Itamaraty, que ficava ainda no Rio de Janeiro, o episódio lhe foi contado por Alarico Silveira, então chefe do Serviço de Informações do Itamaraty, e está registrado no livro Nos bastidores da diplomacia, de autoria de Mariz.
Foi marcada uma reunião no Palácio do Planalto, sede do governo em Brasília, com representantes da Scania, Volvo, Etricson e outras empresas na região escandinava. “(…) o assunto teve depois lances dramáticos. Foram convocados os presidentes e diretores de todas empresas escandinavas no Brasil, como a Volvo, a Scania Vabis, a Ericsson, a Facit, a Nokia e outras menores, e lhes foi solicitado que interviessem na Fundação Nobel para evitar a concessão do prêmio Nobel a Dom Hélder”, relata o livro.
Ainda de acordo com a narrativa da obra que denunciou o plano lobista dos militares brasileiros, “todos lamentaram não poder intervir no caso até que o oficial general que presidia a reunião deu um murro na mesa e anunciou: se os senhores não intervierem com firmeza e Dom Hélder chegar a receber o prêmio Nobel da Paz, então as suas empresas no Brasil não poderão remeter mais um centavo de lucros para as respectivas matrizes. Naquela época, na Presidência do general Médici, o governo tinha meios de adotar tão grave atitude. Naturalmente, após essa explosão prepotente, deve ter havido na citada reunião um grande silêncio até que um ilustre militar, o general Juracy Magalhães (ex-embaixador em Washington, ex-ministro da Justiça e Relações Exteriores do governo Castello Branco), e então presidente da Ericsson no Brasil, protestou veementemente. De nada adiantou e a mensagem foi bem entendida nos países escandinavos. O prêmio foi concedido a outro candidato e não se falou mais em Dom Hélder”, relata o diplomata.
O vencedor foi o norte-americano Norman Borlaug, por suas contribuições à então chamada “revolução verde”, que promoveu impacto positivo na produção de alimentos, em especial na Ásia e América Latina.
O próprio Vasco Mariz já havia sido incumbido de reunir embaixadores da Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia com a mesma missão, mas, conta no livro, todos declinaram. “(…) Um por um, todos os embaixadores me telefonaram lamentando que seus governos tinham a tradição de não interferir em temas do Nobel e não poderiam fazer exceção naquela oportunidade. Apressei-me a informar a resposta dos embaixadores ao secretário-geral do Itamaraty e aí terminou minha ingrata missão de tentar impedir que um ilustre brasileiro, mesmo polêmico como Dom Hélder, recebesse o Prêmio Nobel da Paz (…) Notícias que chegavam da Europa davam Dom Hélder como o favorito para receber o prêmio e isso certamente seria negativo para a imagem internacional do governo militar”.
Brasil sem Nobel
Segundo o ex-embaixador, o movimento contra Dom Hélder foi visto como uma afronta pela Fundação Nobel. “Bem mais tarde, Sizínio Nogueira, que foi embaixador do Brasil em Estocolmo, comentou comigo que, enquanto houver alguém na diretoria da Fundação Nobel que se lembre do esforço feito pelo Brasil para não receber um prêmio Nobel, dificilmente um brasileiro será agraciado”. O Brasil continua sem receber a distinção.
Um dos empresários mais empenhados contra a vitória de Dom Hélder foi Tore Munck, da empresa Munck do Brasil S.A. Ele publicou, em seu jornal na Noruega – o Morgenposte – artigos que classificavam Dom Hélder como “ex-fascista”, por ter militado na Ação Integralista Brasileira, de acordo com Samarone Lima, no livro Chantagem, ameaças e dossiês para tirar mais um nobel de Dom Hélder.

Reprodução
“Os militares, entre os anos de 1970 e 1974, fizeram um lobby internacional, principalmente em Oslo, contra Dom Hélder Câmara, para que ele não recebesse o Prêmio Nobel da Paz. Todas essas iniciativas eram coordenadas pela embaixada do Brasil em Oslo. Nós tivemos acesso a essa documentação. Houve reunião aqui no Brasil com as empresas pressionando contra qualquer iniciativa de premiação de Dom Hélder ao Nobel. E a ditadura militar ameaçou as empresas de serem expropriadas caso avançassem no apoio à candidatura de Dom Hélder”, explica Manoel Moraes, advogado, professor de Direito e coordenador da Cátedra Unesco Dom Hélder Câmara de Dieitos Humanos da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Moraes fala de uma feroz articulação da diplomacia brasileira e da cúpula da ditadura militar para intimidar empresários da escandinávia e elaborar um dossiê para influenciar a decisão do comitê organizador do Prêmio Nobel. Destaca a ação pessoal do embaixador brasileiro em Oslo, Jayme de Souza Gomes.
Os bastidores da operação que impediu Dom Hélder de ganhar o Prêmio Nobel da Paz entre os anos de 1970 a 1973 estão relatados em detalhes pela Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, em 64 páginas do Caderno de Memória e Verdade, volume 4.
Com base em documentos oficiais do próprio Itamaraty foi possível reconstruir todo o planejamento e as ações diplomáticas e políticas desenvolvidas para desconstruir a imagem do religioso brasileiro e evitar sua premiação. Moraes, autor do relatório final, descreve que em 29 de outubro de 1970, em um ofício classificado como “secreto”, Gomes já comemorava a rejeição do brasileiro ao prêmio: “acredito que, cercada do maior cuidado e sigilo, esta Embaixada, embora sem efetuar qualquer gestão oficial, pôde contribuir para o afastamento, pelo menos este ano, da candidatura de Dom Hélder Câmara ao Prêmio Nobel da Paz”.
Em 30 de dezembro de 1970, o diplomata brasileiro em Oslo, num telegrama enviado à secretaria das Relações Exteriores, alerta para um desafio ainda maior que estaria no radar, a premiação do ano seguinte.
“A candidatura de Dom Hélder Câmara ao Prêmio Nobel da Paz de 1971 aumenta de vulto à proporção que se aproxima a data da escolha final, só encontrando, aparentemente, um nome que lhe oponha – o do Chanceler Willy Brandt”, escreveu no ofício datado de 25 de maio de 1971. Brandt foi o vencedor, por três votos a dois.
Resposta da Scania
A Scania informou através de nota enviada por sua Assessoria de Comunicação que “a empresa repudia qualquer tipo de violação aos Direitos Humanos e reforça que atua alinhada às melhores práticas globais de governança corporativa”.