Por Camilo Vannuchi
Os pais já estavam aflitos quando o telefone tocou, na manhã de terça-feira. Alexandre não tinha aparecido na sexta, nem no sábado ou no domingo. Tampouco havia telefonado ou mandado avisar que não iria para Sorocaba naquele fim de semana. Quem atendeu foi José Augusto, o penúltimo dos seis filhos de dona Egle e seu José. Tinha 12 anos, dez a menos que o primogênito Alexandre, e não teria atendido àquela ligação se fosse capaz de prever o que iria ouvir. — Alô.—O Alexandre está preso em São Paulo. Procurem por ele no Dops. Tum, tum, tum, tum.
A identidade do mensageiro permaneceu em sigilo por décadas. Primeiro, por medo. Em seguida, por segurança. Mais tarde, porque já não havia quem perguntasse. Hoje, sabemos que foi Alberto quem telefonou para a casa dos pais do amigo.Alberto Alonso Lázaro era colega de turma de Alexandre. Havia, como ele, entrado em 1970 e, também como ele, pegaria o canudo no final de 1973.
Como Alexandre, queria a volta da democracia e liberdade para as entidades estudantis. Como Alexandre, buscava mobilizar a juventude universitária e, novamente como Alexandre, aproximou-se da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização que fora liderada por Marighella até 1969.
No dia 16 de março de 1973, Alberto foi um dos primeiros a saber que Alexandre havia caído, ou seja, que o amigo havia sido capturado pela repressão. Não porque estivesse por perto ou porque fosse excepcionalmente bem-informado, mas porque Alexandre faltou ao ponto seguinte. No código da clandestinidade, um atraso bastava para desencadear uma série de medidas cautelares, dentre as quais uma fuga repentina e uma mudança inesperada de endereço.
Não bastasse a proximidade na sala de aula, nos barracões dos laboratórios e na área próxima da guerrilha, como costumavam chamar a rede de militantes que mantinham uma atividade legal e apenas ajudavam os guerrilheiros, Alberto e Alexandre também dividiam o mesmo apartamento, uma república estudantil no Itaim Bibi, ora em processo de conversão em aparelho.
Na república, na universidade, nos trabalhos de campo em Itu ou em Bertioga, Alberto era conhecido como “Babão”. Alexandre era o “Minhoca”. Não apenas porque era mirrado e franzino, e apaixonado pelas coisas da terra, mas porque aprendeu cedo a imitar certo professor do curso, Sérgio Estanislau do Amaral, que os veteranos chamavam de “Minhocão”. Virou Minhoca. E fazia o diabo com sua ironia e seu censo de humor, botando apelido em todo mundo, subindo no ombro dos amigos mais encorpados para tirar foto de asas abertas.
Nem dois meses antes de ser sequestrado na rua e levado para o DOI-Codi, o mais temido centro de tortura da ditadura militar, que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra dera de chamar de “sucursal do inferno”, Alexandre havia se submetido às pressas a uma cirurgia de retirada do apêndice. Quando o cerco se fechou em torno dos estudantes da USP que mantinham algum grau de colaboração com a ALN, qualquer grau, a combinação de fatores mostrou-se fatal. Torturado nos dias 16 e 17 de março, Minhoca não resistiu.
Não há laudo médico que não tenha sido falseado, mas desconfia-se que o jovem de 22 anos sofreu uma hemorragia interna na região do procedimento. À tarde, foi trazido aos tropeços para a cela. “Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme”, ele teria dito, em voz alta, segundo o testemunho atento de outros presos políticos. “Sou estudante de Geologia. Me acusam de ser da ALN. Eu só disse o meu nome.” Horas depois, seu corpo jazia, inerte.
(Confira a íntegra da reportagem no Jornal da USP. Link – https://jornal.usp.br/universidade/ha-50-anos-a-usp-perdia-alexandre-vannucchi-leme-estudante-torturado-ate-a-morte-pela-ditadura/)
Foto: Roberto Nakamura (Alexandre está à esquerda, de óculos, com a mão no ombro do colega)
Alexandre Vannucchi Leme é tema do livro que comecei a escrever há algumas semanas e que deverá ser lançado no meio do ano. Escreva para mim para saber mais, adquirir um exemplar na pré-venda ou apoiar a feitura do livro (veja email abaixo). É sempre uma ajuda fundamental para o autor.
No próximo dia 17, uma sexta-feira, haverá um ato em homenagem a Alexandre na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP às 16h, seguida de uma missa na Catedral da Sé às 19h. Venha! Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!
Sobre o autor do texto: Camilo Vannuchi é jornalista e escritor, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela USP, professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e primo de segundo grau de Alexandre Vannucchi Leme. Para informações sobre o livro Alexandre Vannucchi Leme: eu só disse o meu nome, entre em contato pelo email camilo.vannuchi@gmail.com.