Por Vitor Nuzzi, Rede Brasil Atual –
Evento relança livro em que jornalista reflete sobre ‘padrões de manipulação’ da mídia comercial. Antigos e novos profissionais apontam caminhos na encruzilhada entre técnica e ética
São Paulo – Perseu Abramo, jornalista, sociólogo e professor universitário, morreu há duas décadas, em março de 1996, aos 66 anos. Um ano antes, dizia a formandos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo esperar de seus agora colegas o exercício da profissão “com domínio técnico, sentido ético, consciência política e a disposição de assumir o papel de sujeito histórico”. E a mesma PUC foi cenário, na noite de ontem (13), de homenagem ao professor e de relançamento de seu livro Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, pela fundação que leva o seu nome. No debate, colegas de redação e de militância, além de jovens que não o conheceram, mas o têm como referência.
Estavam lá, por exemplo, os jornalistas Alípio Freire, Lia Ribeiro Dias e Sérgio Gomes, ex-sindicalistas como Djalma Bom e Clara Ant (hoje diretora do Instituto Lula) e os antigos colegas e ex-ministros Olívio Dutra, Luiz Dulci e Paulo Vannuchi (os dois últimos também diretores do instituto). E também um dos criadores, em 2012, da revista Vaidapé, Paulo Motoryn, que quatro anos atrás, ainda estudante de Jornalismo, recebeu do professor Hamilton Octavio de Souza a tarefa de fazer um resumo sobre o livro de Perseu. Foi quando sua trajetória começou a mudar: saiu do jornal esportivo Lance para, segundo conta no Facebook, “denunciar os padrões descritos por Perseu e reinventar práticas, estéticas e linguagens do jornalismo”.
No livro, Perseu abramo escreve que é possível distinguir pelo menos quatro “padrões gerais” de manipulação para toda a imprensa: ocultação, fragmentação, inversão (com várias modalidades) e indução. Há ainda um quinto padrão, específico para televisão e rádio.
No começo de sua intervenção, Paulo Motoryn lembra que, exatos três anos atrás, o fotógrafo Sérgio Silva perdeu a visão do olho esquerdo – foi atingido por uma bala de borracha, disparada por um policial, durante as manifestações de 2013. Em seguida, fala dos 300 dias da chacina de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, na qual 23 jovens foram mortos. “A alta política institucional silenciou e a periferia sangrou”, diz, propondo a ampliação das pautas. “Para além de fazer a contranarrativa à Operação Lava Jato, a gente precisa falar de assuntos que passam à margem da alta política”, afirma.
Distribuída gratuitamente, Vaidapé está na quinta edição impressa. Ainda ontem, Paulo foi até a Ilha do Bororé, no extremo sul da cidade de São Paulo, para um debate sobre ocupações nas escolas. E falou aos jovens sobre o livro de Perseu.
Fatos e interpretação
Lia Ribeiro Dias lembra dos tempos de militância com Perseu no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. “A greve de 1979 colocou por terra parte de nossos sonhos”, diz, em referência em movimento da categoria até hoje motivo de debates. Para ela, a chamada grande mídia tornou-se um partido de causas próprias. “Aboliu-se o contraditório, esqueceram-se os fatos, instituiu-se o jornalismo de versões”, afirma, para recordar antigos ensinamentos: “Fatos, fatos, fatos, e só depois a interpretação dos fatos”.
“Todo mundo queria ter aula com Perseu”, lembra o professor Valdir Mengardo. “O que eu aprendi com ele foi exatamente a tolerância, e como Perseu ensinava para a gente esse estender o outro lado, sem abdicar do seu.”
Olívio Dutra usa uma palavra próxima, “paciência”, para descrever Perseu – e também Paulo Freire. “Uma capacidade enorme de ouvir os nossos ímpetos. Perseu puxava os temas, ligando as lutas culturais com a luta política”, recorda, dizendo-se instigado pelo jornalista a ter contato com “coisas não ligadas diretamente a nosso cotidiano, a boa literatura, poesia, canto, música”. Conta que se preocupava com “as olheiras” do incansável Perseu, “uma espécie de secretaria ambulante do partido (PT)”. “Não havia uma reunião em que ele não fizesse anotação.”
Com passagens longas pelos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, além da Abril Cultural e da TV Globo, Perseu Abramo participou da fundação do PT – foi um dos primeiro signatários da ata de formação da legenda, em fevereiro de 1980. Ocupou vários cargos na direção e na executiva, como secretário de Imprensa e de Formação Política. Na gestão de Luiza Erundina como prefeita de São Paulo, em 1989, foi secretário de Comunicação. Em mensagem ao evento, o economista Paul Singer vai lembrar desse período, quando ocupava a Secretaria de Planejamento do município, e da convivência na Escola Estadual Presidente Roosevelt, em São Paulo. Além dele, mandaram mensagens, entre outros, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-governador e ex-ministro Waldir Pires e o ator Sérgio Mamberti. Na primeira fila do público, está Zilah Abramo, com quem Perseu se casou em 1952. O casal teve cinco filhos.
Projeto de país
Primeiro presidente da Fundação Perseu Abramo, Luiz Dulci destaca a importância da homenagem no atual momento político. “O que está em jogo no país tem tudo a ver com a vida dele, com as causas a que ele se dedicou. Não é só uma disputa em defesa de um governo, mas de um projeto de país que, entre erros e acertos, permitiu ao Brasil se firmar no mundo como país, superando uma diplomacia subalterna e agachada”, afirma, citando ainda avanços no combate à miséria e na distribuição de renda, via política de valorização do salário mínimo. “É um projeto de desenvolvimento nacional. O movimento que se opõe a ele é de regressão, não só política, mas social.”
Ao lembrar que Perseu teria sido o primeiro presidente da fundação, criada alguns meses após sua morte, Dulci lembrou que havia várias ideias no PT sobre a entidade, mas acabou prevalecendo o objetivo de torná-la um espaço de reflexão e debate, não apenas um instrumento partidário, mas abrindo espaço para interlocução com outros agentes no meio acadêmico e intelectual. “(A Fundação Perseu Abramo) talvez não tivesse a importância que adquiriu se não tivesse essa visão mais aberta.”
Autora do texto de apresentação desta segunda edição do livro – a primeira é de 2003 –, a jornalista Patrícia Cornils avalia que os exemplos de manipulação, hoje, são “mais claros e constantes” que no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Ela observa ainda que, quando Perseu escreveu sobre as manipulações, ainda não havia internet nem redes sociais. Mais adiante, dirá que a concentração empresarial ainda é real, apesar da produção descentralizada de notícias tornada possível pela internet.
Técnica e ética
E a própria manipulação, escreve Patrícia, tornou-se uma linguagem na rede. “As técnicas descritas por Perseu são a própria ferramenta de produção de memes, criação de perfis falsos em redes sociais para divulgação de textos apócrifos, surgimento e desaparição relâmpagos de publicações on-line”, descreve, citando “truques de prestidigitação de uso constante” nesses meios. “A compreensão de como essa linguagem se estrutura por tais procedimentos serve de guia de leitura crítica e imprescindível para entender em que espaço se dá a junção da imprensa e do poder no mundo contemporâneo.”
A jornalista faz ainda referência a uma fala de Perseu Abramo, citada por Hamilton de Souza na primeira edição, em que o jornalista conversa com estudantes de Jornalismo em dezembro de 1995: “O maior desafio dessa nossa profissão nos dias hoje é a distância entre a técnica e a ética. Cada vez mais, avançam as novas tecnologias, a informática, a telemática, a transmissão por satélites, ondas hertzianas, fibras óticas, ‘estradas eletrônicas’, infovias, telefone celular, fax, computador, modem, a internet e outras redes. E, cada vez mais, o poder político e econômico dos grandes impérios empresariais e multinacionais da comunicação se concentra em um número cada vez menor de poucas mãos, enquanto que a imensa maioria da população continua no seu papel de mera leitora, ouvinte ou telespectadora passiva dessas maravilhas luminosas, ruidosas e brilhantes”.
Também fizeram parte da mesa Kátia Passos, integrante do coletivo Jornalistas Livres, o ex-presidente da FPA Hamilton Pereira (que declamou o poema Contra seu ventre nascemos) e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, que chegou na parte final do evento e afirmou que com as atuais ameaças à democracia “está em risco também a existência do pluralismo e, sobretudo, do bom jornalismo”.
O livro, de 88 páginas, traz textos do professor Reginaldo Moraes (Unicamp), do jornalista e escritor José Arbex Jr. e de Hamilton Octavio de Souza (já presentes na primeira edição), com posfácio do jornalista econômico Aloysio Biondi, em texto publicado originalmente em 1999.