Publicado em Barão de Itararé –
Aprovado com a premissa de garantir que a Internet brasileira seja um espaço democrático, o Marco Civil da Internet está em processo de regulamentação. Sob forte pressão das empresas de telecomunicações, porém, os direitos previstos na lei correm risco. Por isso, dezenas de entidades – dentre elas o Barão de Itararé – assinam manifesto explicando, item por item, o que está em disputa e cobrando que a regulamentação priorize o interesse público sobre o das corporações.
Para assinar o manifesto (como pessoa física ou entidade), envie email para britarare@gmail.com com o assunto “Assinatura Manifesto Marco Civil”.
Leia a íntegra do manifesto:
Marco Civil da Internet: Regulamentar para garantir direitos
O Marco Civil da Internet é uma lei aprovada em 2014 que serve como uma carta de direitos e deveres na rede. Ele trouxe diversas conquistas para a garantia de direitos dos internautas e tornou-se referência internacional para legislações sobre o tema. Para detalhar aquilo que a lei não deixava claro, está em curso um processo de regulamentação do texto, por meio de uma consulta pública aberta até o dia 29 de fevereiro.
Como essa discussão influencia na forma que você vai navegar na Internet a partir de agora, sua participação é fundamental. Mais do que isso, como novamente existem disputas em torno da neutralidade da rede e da proteção à privacidade do internauta, a sociedade precisa se manifestar para que a regulamentação continue alinhada aos objetivos da Lei: a proteção da liberdade de expressão, do acesso à informação, da intimidade e, acima de tudo, o reconhecimento do acesso à Internet como essencial ao exercício da cidadania.
Neutralidade
Este tema está no centro da disputa entre as operadoras de telecomunicação e os usuários da rede. Para atender a seus interesses comerciais, as empresas querem ampliar os mecanismos que permitam discriminar os conteúdos que circulam na rede. Tal prática atenta contra a natureza aberta, plural, única e diversa da Internet, definida no Marco Civil e reafirmada no Art.4º do texto do decreto, que trata da necessidade de se preservar o caráter público e irrestrito do acesso à rede.Ainda que a proposta de decreto reforçe a garantia da neutralidade, ela também apresenta riscos a este princípio na medida em que possibilita a discriminação e degradação de tráfego de maneira bastante genérica.
• Abrangênciados requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços: De acordo com o Marco Civil (artigo 9º, parágrafo 1º) estas possibilidades devem estar limitadas aos requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações e à priorização de serviços de emergência. Os referidos requisitos técnicos são ações exclusivamente necessárias para evitar, por exemplo, o congestionamento da rede em situações excepcionais, mandando pacotes por rotas alternativas quando do rompimento de algum cabo, por exemplo. Ou para cuidar de situações que a ameaçam a segurança da rede, como ataques de negação de serviço (DDoS). No entanto, a carência de definições e a inclusão de termos confusos e abertos no texto do decreto pode obscurecer a interpretação da lei.
Em geral, as empresas de telecomunicações argumentam que a atual infraestrutura de rede não é capaz de atender ao crescimento da demanda por acesso à internet e, por isso, estaria justificado o oferecimento de pacotes de acesso diferenciados, de acordo com os serviços e aplicações mais “populares”, melhorando a “qualidade de experiência do usuário”. Isso seria uma grave violação da neutralidade, distorcendo o caráter público e irrestrito da internet. A falta de investimento nas redes pelas empresas não pode justificar violação da neutralidade para cumprir as metas de velocidade de conexão estabelecidas pela Anatel, por exemplo. Também não se pode admitir como requisito técnico o conceito vago de “adequada fruição das aplicações”.
• Definição de “classes de aplicações”: Outro problema decorrente da falta de definições mais explícitas está no §1º do Art.5º que apresenta um conceito novo e desconhecido, “classes de aplicações”, que não está presente no rol de definições do Marco Civil nem consta nas regulações de outros países e na literatura sobre redes de internet. A melhor solução aqui seria a exclusão do termo “classes de aplicações”, deixando claro que a discriminação ou degradação só deve ocorrer em momentos pontuais ou em situações excepcionais, sempre respeitando os protocolos fundamentais da Internet de acordo com padrões técnicos internacionais estabelecidos pelos RFCs(Request for Comments da IETF).
• Inadequação do termo “priorização discriminatória”: O uso do termo “priorização discriminatória” de dados no Art.8º também pode abrir uma brecha para acordos comerciais que dêem preferência às grandes aplicações online no tráfego de dados, já que poderão cumprir condições em parceria com as teles que start-ups ou aplicações menores não conseguirão oferecer, mesmo que os termos do acordo sejam iguais para qualquer site ou aplicativo. O ideal seria suprimir o termo “discriminatório”, ou definir melhor o conceito de “priorização discriminatória”.
Privacidade
O Marco Civil da Internet obriga provedores comerciais a guardar registros das atividades de clientes. A retenção de dados introduzida no texto durante o processo de tramitação da Lei foi fortemente repudiada pela sociedade civil e por especialistas de TI, entendida como violadora da privacidade dos usuários. Neste sentido, é fundamental que o decreto de regulamentação da lei restrinja a quantidade de informações a serem armazenadas e o período máximo de guarda, bem como as condições em que esses dados podem ser acessados. A transparência, segurança e prestação de contas destes acessos também são muito importantes para reduzir os danos da retenção de dados para os direitos fundamentais que a Constituição, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as Nações Unidas e o próprio Marco Civil da Internet defendem.
• Reafirmação dos obrigados a guardar registros de conexão: Ao determinar a guarda obrigatória de registros de conexão (data e hora de início e término de uma conexão à Internet, sua duração e o endereço IP), o Marco Civil estabelece que apenas “administradores de sistemas autônomos”, conforme definidos no art. 5º, IV, da Lei, devem cumprir essa obrigação. Esse ponto deve ser reforçado na regulamentação, de modo a evitar o entendimento impreciso, arbitrário e inverso ao espírito da lei. Do contrário, várias empresas, escolas e outros espaços de interesse público que não se enquadram nessa definição e que fornecem o sinal wireless aberto à Internet, por exemplo, seguirão sendo pressionados a fazer o que a Lei não obriga, implicando em custos injustificados e em maior guarda de dados em massa dos usuários.
• Abrangênciada guarda obrigatória por provedores de aplicação: A regulamentação deve explicitar que os registros de acessos a aplicações se restringem a data e hora que um determinado endereço IP usou uma determinada aplicação de internet, conforme definido no art. 5º da lei. Deve, ainda, detalhar as características dos provedores de aplicações que os enquadram na hipótese de guarda obrigatória desses registros (art. 15, caput), quais sejam: (i) provedores empresariais, com finalidade lucrativa; (ii) cuja atividade principal seja o provimento de aplicações de internet e que hospedem conteúdo gerado pelo usuário.
• Regulamentação sobre transparência quanto a procedimentos de coleta, guarda, armazenamento e tratamento, bem como sobreprocedimentos de segurança: O artigo 11 § 3odo Marco Civilestabelece que o decreto deve regulamentar a maneira como os provedores de conexões e aplicações devem prestar informações sobre processos de coleta, guarda, armazenamento, tratamento e acesso aos dadospara que se assegure o respeito à privacidade, contudo, o texto atual não o faz de forma suficiente. Transparência sobre tais informações éfundamental na relação entre oconsumidor e os provedores, mas, indo mais além, cabe destacar que várias agências de inteligência estrangeiras e associações criminosas monitoram constantemente a Internet para invadir e explorar computadores que estes considerem lucrativo ou aqueles considerem estratégico, e a segurança requerida pela legislação e executada na prática será o que poderá proteger os sistemas de retenção de dados de se tornarem bancos de dados da inteligência de outro país ou uma grande fonte de dados para fraudes.
• Papel do Comitê Gestor da Internet no estabelecimento de diretrizes de segurança: O decreto deve fortalecer a atribuição do Comitê Gestor da Internet no país no estabelecimento de diretrizes sobre padrões de segurança na guarda e tratamento de dados, complementando e atualizando o que já prevê no art. 11. Deve ficar claro, neste mesmo artigo, que as medidas de segurança citadas não são exaustivas, cabendo, portanto, ao CGI.br continuar a desenvolver estudos e traçar tais diretrizes, que serão consideradas de maneira complementar ao rol do artigo 11.
• Limite ao prazo da guarda cautelar: Também é importante que o decreto limite o prazo para as medidas cautelares de extensão do prazo para a guarda de registros. E que o decreto determine sua exclusão terminado o prazo estabelecido em cada caso.
• Acesso adados cadastrais: Sobre a requisição dos dados cadastrais, cuja guarda é facultativa segundo o texto da Lei, é importante que o decreto que regulamenta o Marco Civil explicite em que contextos eles podem ser requisitados sem ordem judicial e por quais autoridades. Considerando as leis já em vigor no país, como a Lei de Organizações Criminosas e a Lei de Lavagem de Dinheiro, seriam a polícia e o Ministério Público, sempre no contexto de investigações previstas nessas leis. No caso de pedidos em massa de dados cadastrais, cabe a exigência de ordem judicial.
• Cuidados ao definir “dados pessoais” em decreto: Por fim, a definição de dados pessoais presente do decreto deve ser atualizada a partir da legislação específica sobre Proteção de Dados Pessoais, ainda não aprovada no país, sem que o decreto se pretenda um espaço para criar um mini sistema de proteção de dados pessoais, o que iria além do seu escopo .
Sistema de fiscalização
Um terceiro aspecto fundamental da regulamentação do Marco Civil é quem protege os direitos e fiscaliza o respeito à Lei. O decreto explicita que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e a Agência Nacional de Telecomunicações são necessários para garantir direitos no acesso e uso da Internet, formando um sistema de proteção dos usuários.
• Equilíbrio entre o papel dos diferentes agentes de fiscalização do sistema: É preciso que esse sistema seja equilibrado, com a atuação coordenada dessas instâncias e sem dar mais destaque a um em relação aos outros. O texto atual do decreto dá destaque excessivo à Anatel, o que precisa ser revisto. Além disso, vale lembrar queo Comitê Gestor da Internet no Brasil cumpre papel fundamental para o desenvolvimento da rede no país e deve ter suas atribuições reforçadas na regulamentação.
• Incongruências da Anatel fiscalizando aspectos da guarda de dados: Sobre a guarda de dados de conexão, é preciso explicitar que a competência atribuída à Anatel para fiscalizar a proteção adequada a esses registros deve considerar a distinção entre prestadoras de serviços de telecomunicações e provedores de conexão à Internet, já que os últimos em geral não se enquadram no âmbito de atuação da agência.
Participe!
Participe da consulta. Faça suas sugestões ou reproduza esse texto no link http://pensando.mj.gov.br/marcocivil/texto-em-debate/. Se os usuários não fizerem valer seus interesses, poderão perder os direitos já conquistados com a aprovação do Marco Civil. Dê sua contribuição em defesa de uma Internet livre.
Assinam:
Actantes
Associação SoftwareLivre.org
Artigo 19
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Clube de Engenharia
Coding Rights
COLAB – Colaboratório de Desenvolvimento e Participação da USP
Coletivo Digital
IBIDEM – Instituto Beta para Internet e Democracia
IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Internet Sem Fronteiras – Brasil
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Movimento Mega
PROTESTE – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor