Manaus (AM) – Conhecido mundialmente por seu Festival Folclórico, nos meses de junho e julho, Parintins, município da região do Baixo Rio Amazonas, acumula ao longo dos últimos 30 anos problemas de infraestrutura e falta de políticas públicas para populações mais pobres, situação que se agrava no período chuvoso na Amazônia e pelas cheias cada vez mais intensas do rio Amazonas. Grande parte destes problemas enfrentados por moradores dessas áreas pouco visibilizadas é ofuscada pela festa, que acaba dominando o noticiário sobre a cidade.
Por Gabriel Ferreira, compartilhado de Amazônia Real
Na foto: No início deste mês, bairros periféricos do município foram afetados por chuva acima da média, agravando as condições sociais dos moradores (Foto: Liam Cavalcante/Amazônia Real).
É durante o período chuvoso, sobretudo nos últimos anos, quando estão sendo registrados eventos climáticos extremos, que a realidade da população da zona urbana e rural de Parintins (a 369 KM de Manaus) expõe problemas como a falta de moradia, de infraestrutura e de desigualdade social em bairros mais periféricos, oriundos de ocupações de terras . Segundo os dados demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, Parintins tem uma população estimada em 116.439 pessoas, sendo o segundo o maior município do estado do Amazonas.
Entre os bairros mais populosos do município está o Itaúna II, ocupado em 1994 devido ao processo de êxodo rural e à pressão de populares em busca de moradia. A área foi legalizada para urbanização em 1995, com a mediação do então bispo Dom Gino Malvestio. A região fazia parte da Fazenda Itaúna, do empresário paraense Paulo Corrêa, dono de uma grande área de terra ocupada e transformada em bairros, como Itaúna I, Paulo Corrêa e Bairro da União.
No Itaúna II os problemas de infraestrutura causados pela chuva e pela cheia são recorrentes, apesar do Plano Diretor do Município assegurar os direitos de infraestruturas básicas voltadas para a saúde, isto é, água, energia, esgotamento sanitário, coleta de lixo, educação e segurança.
Ao contrário disso, a situação é precária em bairros próximos à Lagoa Azul, como é o caso do Itaúna II, afetado pela forte chuva que ocorreu nos dias 2 e 3 de abril, com uma impressionante duração de 17 horas ininterruptas. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o volume de água foi equivalente a dez dias de chuva. No dia 6 de abril, a Prefeitura de Parintins decretou situação de emergência por 90 dias devido aos danos agravados pelas cheias causadas pelo volume de chuvas acima da média.
Foi o maior volume de chuva em dez anos no município. Segundo a prefeitura de Parintins, 1.300 famílias e 5.200 pessoas foram atingidas, sendo que 47 famílias ficaram desabrigadas, conforme atualização da Defesa Civil do Estado. É o caso da doméstica Valdeney Teixeira, moradora há 20 anos do Itaúna II, que convive com inundações provocadas pela chuva e cheias do rio.
“Na hora da chuva deu muito medo. Pânico, terror de ver as coisas que trabalhamos com sacrifício se perderem. Perdemos duas televisões, molhou o colchão, molhou algumas roupas. Teve vizinhos que perderam muito, teve gente que precisou ser retirada para algum abrigo. Na hora da chuva eu e meu marido chamamos nossos filhos e fomos para parte dos fundos do terreno, onde tem uma cobertura, e lá ficamos junto com os pertences que conseguimos retirar”, relatou à Amazônia Real.
Além dos impactos do período chuvoso acima do normal, que ocorre anualmente de dezembro a maio, Valdeney afirmou que todos os anos precisa lidar com outro fenômeno natural, a cheia do Baixo Rio Amazonas. A subida do rio Amazonas faz aumentar o nível da Lagoa Azul, gerando transtornos e inundações, como na última grande cheia, em 2021.
De acordo com a moradora do Itaúna II, uma das formas de evitar os prejuízos causados pelo período de inundações é não deixar as coisas nas partes baixas da casa e sempre fechar bem as portas, pois na lagoa existem animais que podem representar perigo, como cobras e jacarés.
O bairro Lady Laura, situado ao lado da Lixeira Pública, também ficou em situação crítica. Segundo a presidente da Associação de Moradores, Simone Coelho, em uma das áreas mais baixas a água ficou parada, sem ter para onde escoar.
“A parte mais baixa aqui do bairro alagou por causa dessas praticamente 17 horas de chuva que caiu na cidade. E uma parte do nosso bairro foi prejudicado com bastante água. Muitas pessoas ficaram impossibilitadas de sair das suas casas”, relatou.
Moradora há seis anos do Lady Laura, Keylla Sarmento disse que, assim como outros moradores, segue com problema de trafegabilidade nas principais ruas do bairro. “Estamos tendo problema com acesso às nossas residências”, disse, citando a interdição de vias essenciais para a locomoção no bairro.
Falta de escoamento
No bairro da Francesa, a professora de educação infantil Jucilene Matos, moradora do beco Submarino, é mais uma a enfrentar os impactos do período chuvoso e da cheia do Rio Amazonas. A área onde ela mora é afetada todos os anos pela cheia, devido a proximidade do local com a Lagoa da Francesa. Enxurrada e entulhos invadiram a casa.
Jucilene relatou que sentiu medo pois nunca havia presenciado um temporal tão longo. “Geralmente dá temporal, mas passa. Sei que dá enxurrada, mas passa. Mas agora a estrutura da casa ficou abalada. A casa balançou um pouco e o muro do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) ficou igual uma baía. A enxurrada e o lixo fizeram o muro desabar”, disse.
Além de enfrentar o período chuvoso nesta época do ano, a moradora contou à Amazônia Real que, anualmente no período de cheia do rio, a água chega nas proximidades do local onde mora e o volume debaixo do beco aumenta, inundando as residências com assoalho mais baixo e também a ponte de madeira que dá acesso ao local.
Na última enchente, no ano de 2021, foi necessário aumentar o nível do piso da casa da professora. “Nós estamos nos preparando, vendo o que a gente pode fazer, aumentando onde é mais baixo”, disse sobre os preparativos para 2022.
Sobre a área da Lagoa Azul, onde mora Valdeney, o geógrafo afirma que o local era um grande lago, servindo no passado até mesmo para balneário e atividades de pesca. No entanto, esse local sofreu mudanças devido ao processo de ocupação urbana, seguido pela falta de ordenamento e infraestrutura, que é responsabilidade da Prefeitura de Parintins. “Com o processo de ocupação dos terrenos e por residências, foram aterrando e reduziram (o lago). Então a impermeabilização afetou completamente o terreno”, afirmou.
Luna Gripp, pesquisadora de hidrologia do Serviço Geológico Brasileiro (CPRM), diz que as estações que monitoram os níveis dos rios da bacia amazônica no Amazonas em cidades como Manaus (rio Negro), Manacapuru (rio Solimões) e Itacoatiara e Parintins (rio Amazonas) apresentam atualmente níveis acima do esperado para o ano.
Mas ela destaca que não é apenas a enchente acima do esperado as causas dos problemas enfrentados pelos moradores destes municípios, como é o caso de Parintins. Luna Gripp diz que a falta de escoamento da água no município e a falha na drenagem pluvial na cidade impactam famílias que vivem em áreas sem políticas de urbanização.
“Quando a gente observa que apenas um município (Parintins) está sofrendo muito por um problema associado à inundação é porque provavelmente ocorreram chuvas bem próximas e aquela água que caiu não teve pra onde escoar. Então normalmente é um problema de drenagem pluvial, que é uma questão do próprio município e não do grande rio associado”, diz Luna Gripp.
Prefeitura não faz drenagem, diz geógrafo
O geógrafo Camilo Ramos, professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), explica os motivos de o município sofrer com esses problemas.
“Parintins é um terraço fluvial, ainda em processo de formação. Quando está em processo de formação está ligado ao período geológico em que você tem uma formação muito recente. Então ali há um predomínio de parte de várzea, parte de terra firme, com o rebaixamento de áreas que podem ser inundadas em decorrência da enchente do rio”, disse à Amazônia Real.
A impermeabilização e a falta de drenagem são os principais fatores apontados por Camilo Ramos na infraestrutura municipal, sobretudo em bairros oriundos de ocupações urbanas, como o Itaúna II.
Ele explicou que o processo começa com a retirada da vegetação, pois as raízes contribuem para a infiltração da água da chuva com mais rapidez. Em seguida, o poder público não realiza a drenagem superficial e de profundidade para escoamento do rio e da água da chuva, agravando a situação com a impermeabilização das ruas com asfalto.
“Por ser um terreno plano, dificulta um pouco o preparo dos esgotos subterrâneos para que haja uma vazão, porque chega um ponto que há um represamento e o retorno. Deveria ser feito um estudo para encontrar a melhor forma de evitar os alagamentos”, declarou.
Camilo Ramos apresentou algumas iniciativas que o poder público municipal e estadual poderiam realizar com base em estudo multidisciplinar para solucionar o problema de inundações que atingem bairros como o Itaúna II.
“O primeiro passo é a retirada das pessoas das áreas mais rebaixadas, atingidas pela cheia e pela chuva. Na impermeabilização qualquer chuva acima de 120 mm alaga a cidade. É típico o que aconteceu no domingo (3 de abril), que foi uma chuva de 213 mm em 17h que alagou a cidade. A cidade é muito impermeável, a água fica na superfície e aumenta o volume rapidamente, invadindo casas”.
Os aterros, não só por ocupações, mas realizados pela prefeitura em áreas de inundação, foram causadores da falta de pontos de escoamento no município, conforme explicou o geógrafo.
“Se nós olhamos no entorno da ilha, as saídas de água foram ocupadas por residências. Então o próprio final de rua, que teria um ponto de escoamento, sofreu aterramentos. Um exemplo é o aterro na Lagoa da Francesa, estreitando o canal. Tem o aterro no bairro da União, estreitando o canal. Tem o aterro no bairro Santa Rita, comunicando com o bairro Palmares. Tem aterro na rua Paraíba, onde foi deixada uma pequena passagem para o rio natural. Tem aterro na ponte (Amazonino Mendes), que liga o resto da cidade ao bairro de Itaúna II”, disse.
Medida do governo pode piorar
No dia 30 de março deste ano, o governador Wilson Lima (União Brasil) anunciou o Programa Social e Ambiental do Interior (Prosai) em Parintins, que tem objetivo de realizar “intervenções nas áreas de saneamento, abastecimento de água, habitação e urbanização”. O governo do Amazonas afirma que busca solucionar através do Prosai as questões ambientais de saneamento básico, infraestrutura e moradia para áreas alagadiças da cidade.
A intervenção de 119 mil metros quadrados do programa deve alcançar, conforme o governo, os bairros da Francesa, Palmares, Santa Clara, Rita de Cássia e Centro de Parintins.
O geógrafo Camilo Ramos aponta que essa intervenção pode vir a tornar-se mais um problema no município. “Nós sabemos, aí é cimento colocado em áreas que alagam, vai afetar o curso do rio e provocar outras situações de alagação na cidade. Tem que ser feito um estudo realmente pra ver como é que a Ilha suporta todas essas construções que podem ser feitas”, disse.
Procurado pela Amazônia Real através da assessoria de comunicação para tratar sobre as questões de infraestrutura de Parintins, o secretário de Obras do município, Albano Albuquerque, não respondeu até a publicação desta reportagem.
O último boletim de monitoramento da cheia no Estado, divulgado no dia 8 de abril pelo Serviço Geológico do Brasil-CPRM, “estações monitoradas começaram a indicar uma tendência de níveis altos (do Rio Amazonas) para o atual período no ano, ultrapassando o limite superior da faixa de normalidade”. Comparado ao mesmo período do ano passado de cota máxima, que marcava 840 cm, o Rio Amazonas, na calha do Baixo Amazonas, está atualmente dois cm acima.
O boletim também aponta processo intenso de enchente, com níveis acima do esperado, para toda a calha do Rio Negro. Na bacia do Rio Solimões, cuja foz fica em Manaus, a enchente encontra-se normal para o período, exceto para Manacapuru (médio Solimões), onde o nível atual encontra-se no limite superior da faixa de normalidade.
Eventos climáticos extremos têm sido recorrentes
O climatologista e coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), José Marengo, diz que há uma frequência maior de eventos climáticos extremos como a cheia e a seca dos rios.
“Desde 2000 a Amazônia teve secas intensas em 2005, 2010 e 2015-16 e cheias em 2009, 2012 e 2021. Estes eventos poderiam ser eventos de um em 100 anos, mas aconteceram em menos de 25 anos”, disse.
Marengo explicou que esses fenômenos extremos são causados por efeitos do El Nino, como por exemplo, as secas extremas de 2010 e 2016, assim como “o Atlântico Tropical Norte mais quente (2005) ou as cheias associadas a chuvas mais abundantes típicas de La Niña, como em 2021 e, possivelmente, em 2022”.
A variação do clima e as chuvas irregulares são os maiores sinais de mudanças climáticas, determinando períodos de cheia e seca dos rios de forma extrema, conforme explicou o climatologista. “O que está mudando é a variabilidade do clima. As chuvas estão mais irregulares em todo o mundo e esse cenário é aquele que os modelos projetam para o futuro, onde o aquecimento global pode aumentar ainda mais com a queima de combustível fóssil e o desmatamento. E isso gera uma intensificação do ciclo hidrológico, o que determina chuvas mais intensas assim como secas mais intensas”.
“A culpa é nossa”
O ambientalista e secretário executivo da organização Observatório do Clima, Marcio Astrini, afirma que a “relação é total” entre as mudanças climáticas com os impactos sociais gerados a partir das ações humanas.
Astrini revelou que três relatórios do IPCC, elaborados por cientistas da ONU (Organização das Nações Unidas), apresentam uma sentença sobre a situação grave do planeta. “As mudanças climáticas já acontecem, são generalizadas, acontecem de uma forma sem precedentes nos últimos 6.500 anos na história do planeta. A culpa é nossa e a temperatura vai subir até meados do século, não importa o que seja feito por conta do que já foi emitido de gases. E esses gases vão ter efeito por conta do acúmulo contínuo na atmosfera”, afirmou ele, à Amazônia Real.
De acordo com o ambientalista, vivemos os impactos do aquecimento global e ele já causa uma série de consequências negativas, principalmente nas populações mais pobres.
“Nós temos uma relação de interdependência de chuvas, correntes marítimas, ondas de calor São esses mecanismos que balanceiam hoje esses eventos naturais e esses mecanismos estão sendo alterados. Quer dizer que vamos ter menos chuva ou menos água no planeta? Não, quer dizer que os eventos de onda de calor serão de forma inédita e isso vai mexer em uma série de situações essenciais de vida humana na terra”, declarou.